Capítulo 39 – Capcioso
Theo tomou a mão de Sam e avisou ao pessoal no casamento que iriam tomar um ar na área externa.
– Sente aqui. – Theo pediu que Sam sentasse num banco de madeira no final do deque, e sentou ao seu lado.
Tirou o comunicador da pequena bolsa, e enquanto mexia Sam a interpelou.
– Por que me chamou aqui fora? Para checar seu comunicador?
– Assista. – Entregou o aparelho, e Sam assistiu a toda a cena, boquiaberta.
– Então… Você a atirou no lago? Sozinha? – Sam indagou.
– Não foi o que você viu?
– Quem gravou?
– Meg.
– O que vocês conversaram? Não dá para ouvir quase nada, só entendi ela gritando ‘volte aqui!’, ‘você me paga!’.
– Bom, resumindo, ela não me pediu desculpas, esse foi o maior erro dela hoje.
– Você já sabia que ela estava na festa? E não me contou?
– A encontrei no banheiro, marquei um encontro com ela no deque lá de trás.
– Marcou?
– Mandei um bilhete em seu nome, através de um menino.
– Em meu nome? O que dizia o bilhete?
– Sabe, essas pessoas não são muito inteligentes. – Theo espojou-se no banco, abrindo os braços sobre o encosto. – Na verdade a vaidade cega o bom senso.
– O que dizia o bilhete, Theo?
– Só a chamava para fazer sexo.
– Isso foi horrível!
– Mas funcionou. – Riu.
Após alguns instantes em silêncio, Sam voltou a falar.
– Eu adoraria ter assistido, presencialmente.
– Você teria interferido, ou participado.
– Teria ajudado.
– Sam. – Theo virou-se de lado, ficando de frente para ela. – Eu lido melhor com isso do que você. Eu me sinto bem agora, na hora fiquei nervosa, com raiva, com medo, mas agora estou bem, passou. Mas você não, você é uma pessoa infinitamente mais sensível, isso te afetaria demais, provavelmente estragaria sua noite, tiraria sua paz.
– Você me acha sensível?
– No melhor sentido. A maldade do mundo te afeta muito mais do que a mim.
– Você é durona, atirou a Isadora no lago.
Theo riu.
– Me tornei um pouco durona.
Sam tomou seu rosto com as mãos, e a beijou. Já passava da meia-noite, ambas estavam cansadas, a noite estava quente, mas as árvores e o lago refrescavam o local.
– Fique aqui comigo um pouco, preciso respirar. – Theo se recostou no banco e abriu o braço a chamando.
– O tempo que você quiser.
– Eu já te disse que você ficou linda nesse vestido azul? – Theo perguntou.
– Algumas vezes. – Sam disse após aconchegar-se no ombro dela.
– Você está deslumbrante, amor.
– Você também está, eu adoro quando suas tatuagens ficam visíveis. – Sam retrucou.
– A festa está linda, não acha?
– Está feliz, cheia de pessoas felizes. Você viu que aquelas duas não conseguem tirar o sorriso do rosto?
– Dani e Lê merecem essa felicidade.
– Sim, esse casamento é apenas para coroar uma relação já consolidada, forjada com amor e cumplicidade, é uma formalidade. – Theo disse.
– Você acha desnecessário?
– O que?
– Casar.
– Não, claro que não. – Theo se dava conta. – Você ainda tem aquele sonho de infância, de casar?
– Tenho.
– Você casaria comigo? – Theo perguntou.
– Isso é uma pesquisa ou um convite?
– Uma pesquisa.
Sam desencostou de seu ombro, e a fitou.
– Essa é uma pergunta capciosa, porque eu não faço ideia se você já pensou algum dia em sua vida em casar-se.
– Mas a pergunta não tem a ver com o que eu quero ou deixo de querer, eu perguntei se você consideraria realizar seu sonho de infância comigo, já que não preencho os requisitos do seu sonho, eu sei que não sou o que você esperava para sua vida.
– E se eu responder que sim, e você retrucar que não?
– Então sua resposta é sim? – Theo perguntou.
– Sim, eu me casaria com você, o sonho é meu e você não sabe como ele é, o mais importante no sonho não era o fato do noivo ser do sexo masculino ou algo do tipo, a única coisa que importava nesse meu sonho era que eu amasse a pessoa que estivesse comigo no altar, e que ela também me amasse. – Sam lhe deu uma pequena lição de moral, a pegando desprevenida.
– Você quer se casar comigo?
– Já não respondi sua pesquisa? Achei que tinha ficado claro.
– Não é uma pesquisa, agora é um pedido, sua boba.
Sam emudeceu.
– Então você quer se casar? – Sam perguntou, confusa.
– Com você eu quero. – Theo tomou sua mão. – Casa comigo?
– Você está falando sério, Theodora? Não brinque com isso.
– Eu nunca brincaria com seus sonhos. Nem com os meus.
Sam desarmou-se num sorriso.
– Claro que eu caso, você é a mulher da minha vida.
– É bom mesmo, não quero atirar mais ninguém na lama.
***
No final da semana seguinte Theo levou Sam para a França, visitaram Isabel, mãe de Sam, e seus dois meios-irmãos de doze anos. Passaram o Natal em Kent, na casa de Lindsay, e retornaram para San Paolo no dia 28.
Lá pelas tantas daquela noite de retorno à mansão, em meio à lascívia de algumas horas de sexo e divertimento, Theo interrompeu enquanto invadia sua namorada com seus dedos.
– O que foi? – Sam perguntou ofegante.
– Que acha de evoluirmos as coisas? – Respondeu com um sorriso sacana.
– Para onde?? Pelo amor de Deus, Theo, continua o que você estava fazendo.
– Eu vou buscar a mala dourada, já volto.
– Que??
Theo saiu da cama nua, vestiu um roupão, tomou a muleta e buscou a pequena mala dourada no closet. Com dificuldade, a jogou sobre a poltrona e abriu.
– Venha aqui, escolha o que você quiser. – Theo a chamou.
Sam enrolou-se no lençol e seguiu um tanto contrariada até a poltrona, olhando com certo espanto para aquele monte de brinquedos sexuais, de todos os tipos e tamanhos.
– Mas o que… – Tomou um plug duplo de bolinhas de silicone em mãos, observando com a testa franzida.
– Ãhn, acho melhor você começar com algo mais simples, amor.
– Eu não faço ideia da utilidade disso.
– Olha só, eu pensei em usar isso em você, o que acha? – Theo ergueu um strap-on cor de rosa translúcido. – Esse você sabe para que serve, você viu nos vídeos que Letícia te mandou.
– Mas isso é um…
– É apenas uma cinta com um dildo. É divertido. – Theo voltou a sorrir arteiramente.
Sam olhou atentamente mais um pouco para o conteúdo, parecia confusa, cheia de dúvidas.
– Podemos fazer o que você quiser, inclusive sem acessórios, ok? Podemos voltar para onde paramos, os meus dedos. – Theo a tranquilizou.
– Essas coisas estão guardadas há anos.
– Está tudo limpo e higienizado, Marcy lavou tudo.
– Marcy?? Marcy viu isso??
– Marcy sempre cuidou dos meus brinquedos.
Sam ajeitou o lençol que segurava firmemente abaixo do seu queixo, precisou de alguns segundos pensativos antes de voltar a falar.
– Eu acho isso interessante, esse… esse aí que você pegou. Confesso que é o que mais tenho curiosidade, mas eu não sei se funcionaria comigo.
– Eu funciono em você, não funciono?
– Sim, mas a questão é outra… – Sam dizia encabulada.
– Então me diga, você sabe que não precisa ter pudores comigo, querida.
Sam limpou a garganta e explicou.
– Por cinco anos eu tive esse tipo de sexo e nunca surtiu efeito, eu nunca cheguei ao orgasmo com um pênis me penetrando, e isso aí tem o mesmo formato. – Disse apontando.
Theo surpreendeu-se com o rompante sincero dela.
– É uma observação pertinente. – Theo respondeu no mesmo tom, porém rindo ao final da frase.
– Você está se divertindo com a minha cara…
– Não, não estou. – Voltou a falar num tom ameno. – Vamos fazer o seguinte: você usa em mim primeiro, o que me diz?
O semblante de Sam animou-se instantaneamente.
– Posso?
– Você pode usar a mala inteira em mim, se quiser. Inclusive a mala. – Riu.
– É fácil de usar?
– Acho que você vai pegar o jeito rapidinho, nós temos uma sintonia interessante na cama.
Sam olhou o artefato de couro e silicone rosa na mão dela, mordeu o lábio inferior, e a conduziu para a cama pelos ombros, lhe despindo do roupão. Após um início inseguro, a soldado operou o artefato com tímida desenvoltura, chegando ao objetivo desejado.
– Funcionou em você… – Sam deitou-se ao seu lado, com a respiração acelerada. Theo subiu em seu peito, a beijando, e desvestiu o strap-on dela.
– Nossa… E se funcionou. – Theo recuperava o fôlego também.
– Eu também quero. – Sam disse animada. – Quando você tiver condições, é claro.
Theo riu e a beijou com ardor.
– Preciso que você esteja quente… – Murmurou enquanto mordia sua orelha. – Muito quente e molhada…
– Mais do que isso? – Sam levou a mão dela até entre suas pernas.
– Perfeito…
Após vestir o strap-on, Theo fingiu reger a dança dos corpos. Mas como sempre, ela apenas respondia aos sinais que coletava, da delicada observação das reações e desejos da sua amante, Sam ditava o ritmo e profundidade, sem sequer se dar conta da sua regência. A sintonia era de fato a protagonista, muito além de uma sincronia carnal, havia ali uma conexão de almas forjada com desejo em sua forma bruta. O orgasmo com nova nuance não tardou a vir.
Theo já havia tomado banho, deitada e sonolenta assistia sem atenção a um filme na tela em frente. Sam juntou-se a ela logo em seguida, após seu banho, aconchegando-se em seu peito.
– Você nem desconfiava do conteúdo da mala dourada? – Theo perguntou, após subir o edredom e as cobrir até os ombros.
– Desconfiava, mas não imaginava aquela variedade.
– É nosso, podemos brincar à vontade. – Theo disse lhe beijando o alto da testa.
– Eu gostei do strap-on.
– Eu sabia que você iria gostar… – Theo sorriu. – E eu quero usar de outra forma em você, já que você adora quando faço fio terra.
– Hey, uma coisa de cada vez, hoje foi uma boa evolução.
– Isso foi um sim?
– Foi um talvez. – Respondeu tímida.
Theo suspirou com cansaço e mergulhou seus dedos nos cabelos soltos de Sam.
– Viu como eu tinha razão? – Theo voltou a falar.
– Sobre o que?
– Você sente prazer com esse tipo de penetração, o problema era o que havia do outro lado.
– Mike?
– Sim, ele não sabia como te dar prazer. Se ele prestasse um pouquinho de atenção em você, um pouquinho só, poderia ter sido bom.
– Você lê minha mente, Theo.
– Eu presto atenção. – Sorriu torto, convencidamente. – Não é nada difícil te levar ao orgasmo.
– Às vezes basta um olhar seu para me incendiar.
– Mérito seu. – Riu. – Mas eu sempre achei você uma delícia, mesmo antes de te enxergar.
– O nome disso é insanidade.
– Que nada, é amor.
***
Na noite seguinte, dia 29, arrumaram suas respectivas malas, viajariam na manhã seguinte para Morro de San Paolo, onde passariam o réveillon e dez dias. Sam estava animada em mostrar as mudanças efetuadas em sua suíte na pousada, adaptando para as necessidades da namorada. Do outro lado, o planejamento da festa de virada de ano com os amigos era o que animava e deixava Theo radiante.
– Me preocupo com nossa segurança na praia, sei que teremos helicópteros a disposição, mas estaremos numa ilha, com as limitações de estar numa ilha. – Sam dizia, ao adentrar a sala de mídia, onde Theo já se encontrava, mexia no comunicador despojada no sofá.
– Claire me disse que duplicou a equipe de segurança, acho que não precisamos nos preocupar com isso, a pousada estará fechada apenas para nós. – Theo abriu o braço a convidando a aconchegar-se.
– Vai ser uma festança. – Sam deitou em suas pernas.
– Vai sim. – Theo se animou. – E teremos a maior ceia que você já viu.
– Para compensar a ceia ínfima do ano passado? – Sam riu.
– Na verdade aquela primeira refeição com você foi a mais saborosa da minha vida, tinha gosto de liberdade.
– Por que você resolveu fugir do Circus na noite de réveillon?
– Eu não sabia que era réveillon, parecia apenas uma noite comum de trabalho. Só me dei conta já dentro do seu carro, quando ouvi fogos. Você sabia?
– Sabia, Lindsay havia me ligado para desejar feliz ano novo. Mas para mim também parecia apenas mais uma noite solitária na estrada.
– Já nem tão solitária. – Theo lhe sorriu, afagando seu rosto. Sam a puxou pela nuca, e a beijou.
– Onde estão os morangos? – Theo disse.
– Esqueci, vou lá buscar.
Sam voltou da cozinha com um pote cheio de morangos, que dividiam lado a lado no largo sofá.
– Onde você foi hoje à tarde? – Sam perguntou descontraidamente.
– No médico, eu lhe avisei que ia ao médico.
– Eu sei, mas qual médico? E por que não quis que eu fosse com você?
Theo a fitou hesitante.
– Eu estava guardando essa conversa para a noite de réveillon.
– Qual conversa? – Sam perguntou preocupada, com um morango parado no ar.
– Eu andei fazendo uns exames, e umas consultas também. Hoje fiz a consulta final, tive um diagnóstico.
– Você vai me matar do coração se não me contar o que está acontecendo, Theo. Que tipo de médico?
– Ginecologista. Na verdade eu estava curiosa, por isso resolvi procurar uma profissional para averiguar uma coisa.
– Que coisa?
– Ela me disse hoje que meu sistema reprodutor está funcional, apesar de todo esse massacre está tudo funcionando direitinho.
– Sistema reprodutor? – Sam franziu o cenho.
– Eu posso ter filhos. – Theo abriu um sorriso.
– Você quer ter filhos?
– Quero. Você quer ter filhos? Você sempre me disse que sonhava desde criança em ter filhos.
– Ãhn, quero, sempre quis, mas você sabe que não posso, eu nem tenho mais útero.
– Quer ter filhos comigo? – Theo perguntou cheia de dedos.
– Mas quem seria o pai?
– Não precisa de pai, a medicina já resolveu isso, estamos no século XXII, lembra?
– Então… Seu filho teria apenas mãe, e não pai?
– Sam, você não gostaria de ter um filho biológico?
– Eu não posso, amor.
– Sua histerectomia foi parcial, você tem material suficiente para produzir um embrião, juntamente do meu óvulo. Ok, não me julgue, mas eu andei fuçando seus exames de rotina, eu vi que você ainda tem um ovário, a partir das células do seu ovário é possível.
– O que exatamente é possível?
– Usar seu material genético para fertilizar meus óvulos, e então teríamos um filho biologicamente nosso. Compreendeu?
– Isso é possível? Duas mães?
– Aqui é possível e comum, mas eu entendo seu espanto, na Europa isso é proibido.
Pela primeira vez durante a conversa, um sorriso surgiu lentamente nos lábios de Sam.
– Um filho nosso? Um filho meu e seu?
– Sim, um filho nosso, gestacionado por mim, que ainda possuo todas as ferramentas, mas ele seria meu e seu. – Theo riu.
– Um filho nosso… – Sam assimilava, com um sorriso torto.
– Não são planos para os dias atuais, eu preciso estar melhor para encarar uma gestação, preciso me recuperar em vários âmbitos, mas agora sabemos que é possível, agora podemos fazer planos. – Theo segurou sua mão e a beijou.
– Seria maravilhoso, Theo. – Sam não se continha. – Seria perfeito, é tudo que mais quero com você, ter filhos, formar uma família.
– Consegue imaginar um Samzinho ou Samzinha correndo por essa sala?
– Eu realmente espero que ele herde a sua tranquilidade. – Riu.
– Minha proposta é a seguinte: casamos no ano que vem, e depois planejamos de forma mais consistente a encomenda de um filhote. Combinado?
– Fechado. – Sam lhe estendeu a mão, Theo lhe cumprimentou, mas a derrubou sobre o sofá, lhe cobrindo de beijos.
– Você derrubou os morangos. – Sam disse enquanto era devorada.
– Eles podem esperar, temos todo tempo do mundo.
– Sabe o que você me lembrou? Que tecnicamente você não é mais minha namorada.
Theo interrompeu, ergueu a cabeça a fitando, ainda deitada sobre o corpo dela.
– Não?
– Você é minha noiva.
Theo abriu um largo sorriso, de orelha a orelha.
– Você está coberta de razão.
Após algum tempo namorando no sofá da sala de mídia, subiram para a suíte, Theo mexia em seu comunicador na poltrona colorida. Quando Sam saiu do banheiro, ela passou a acompanhar seus passos pelo quarto, pensativa.
– Por que você está me olhando assim? – Finalmente Sam percebeu, ao sentar na cama.
– Tem uma coisa que você nunca me contou, eu achei que você me contaria hoje.
– Eu sempre contei tudo para você.
– Você se importaria de me contar por que fez uma histerectomia aos 17 anos?
Sam congelou, assim como seu semblante.
– Acho que você sabe.
– Eu não sei, juro que não sei.
Sam colocou as pernas para cima da cama, recostou-se na cabeceira, e cobriu-se até a cintura.
– Foi por consequência de um aborto clandestino.
– Aborto? – Theo balbuciou chocada.
– A gravidez já estava avançada, tive complicações.
Theo a fitou ainda chocada por um tempo. Saiu da poltrona e sentou-se na borda da cama, de frente para Sam.
– Você estava esperando um filho de Mike?
– Estava, erramos os dias, enfim… Meu ciclo era irregular. Por isso também só descobri a gravidez no terceiro mês.
– Eu achei que vocês eram contra o aborto. Vocês, católicos fervorosos.
– E somos, mas ter um filho naquele momento colocaria nossa iminente carreira no exército por água abaixo.
– Isso não me parece decisão sua.
– E não foi. – Sam baixou a cabeça, entristecida. – Eu não queria tirar, não queria.
– Mike te obrigou?
Sam balançou a cabeça, confirmando.
– Não pensou em fugir, ou pedir ajuda para algum padre?
– Sabe o que ele fez quando eu disse que não queria tirar? Ele me atirou na parede e me chutou, para que eu perdesse a criança.
– Eu sinto muito…
– Eu tinha 17 anos, Theo. Eu não sabia quase nada da vida, agora eu sei que poderia ter lutado, mas não lutei, eu achava que se Mike me abandonasse, eu seria uma escória da sociedade, uma mãe solteira largada pelo namorado, que minha vida terminaria sem ele, nem minha família me acolheria.
– E por causa da gravidez avançada você precisou passar por um procedimento cirúrgico, com curetagem, não foi?
– Sim, como o aborto é proibido na Europa tivemos que encontrar um desses açougues de fundo de quintal, porque não tínhamos dinheiro para uma clínica clandestina decente.
– Fizeram alguma barbeiragem em você, e você teve complicações.
– Mesmo tendo complicações ainda me deixaram em cima de uma mesa metálica por quatro horas, sangrando, porque não queriam se complicar me levando a um hospital.
– E o que aconteceu? – Theo corria seus dedos por cima da mão de Sam, sobre a cama.
– Quando acharam que eu ia morrer me jogaram num taxi, para que me deixassem na porta de algum hospital. Eu sobrevivi, mas removeram quase tudo, aos 17 anos me tiraram também o sonho de ser mãe.
Theo segurou com firmeza a mão dela.
– Deve ter sido um dos piores momentos da sua vida, não é? Eu realmente sinto muito.
– Foi, desculpe nunca ter contado, eu não gosto de falar sobre isso.
– Eu imagino o quanto isso é difícil, roubaram seu sonho.
– Você me devolveu esse sonho hoje. – Sam sorriu para ela.
– Das vantagens de ser lésbica. – Theo riu.
– É o que eu falo, Deus sempre tem propósitos maiores para nós.
Theo deitou-se sobre suas pernas, de costas, recebendo a mão quente de Sam em seu rosto.
– Você acha que sempre esteve predestinada para mim? – Theo perguntou.
– Acho, eu realmente acho que você é a mulher da minha vida, não falo isso por falar.
– Tudo se encaixou, aos trancos e barrancos.
– Absolutamente tudo.
Theo enfiou-se embaixo do cobertor, a conversa prolongou-se entre beijos e afagos, e adormeceu encaixada em suas costas, como se abraçada a própria existência.
Por volta de quatro da madrugada Sam acordou com um barulho no andar de baixo, sacudiu Theo para que ela acordasse.
– Ãhn?
– Estou ouvindo vozes lá embaixo, tem gente aqui. – Sam sentou-se.
– Eu ouvi agora. – Theo também sentou, ouvindo atentamente.
Batidas enérgicas na porta, e Sam ficou de pé.
– Sam, a polícia está aqui, quer falar com você. – Era a voz de Marcy.
Capcioso: adj.: que procura confundir, para levar ao erro; ardiloso, astucioso.