2121 – Capítulo 40

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Capítulo 40 – Ímpio

 

A dupla caminhava devagar pela trilha de areia branca, que se destacava do restante da escuridão da mata ao redor, Sam mancava, conduzia Theo com a mão esquerda, e fazia pressão sobre o tiro com a direita.

– Você tem uma namorada? Quando ia me contar isso?

– Ela não é mais, depois de dois anos é óbvio que ela tocou a vida.

– Você tem uma namorada… – Sam repetiu assimilando.

– Com certeza disseram que eu morri, você acha que ela continuaria me esperando?

– E se estiver te esperando?

– Já era.

– Como assim já era?

– Eu não a esperei.

– Vocês nunca terminaram, tecnicamente ela é sua namorada sim.

– Não é não.

– E se ela achar que ainda é sua namorada?

– Informarei que ela não é mais.

– Coitada da garota.

– Coitada? Você criou laços afetivos por ela em trinta segundos?

– A namorada some e retorna depois de dois anos, e você vai informá-la que não há mais nada?

– E daí? Você está problematizando algo simples, ela tocou a vida dela, ela não me esperou, até porque esse não é o perfil dela.

– Ela vai querer voltar a namorar com você quando descobrir que você está viva, os sentimentos podem não ter passado.

– Sentimentos? Sam, não éramos nenhum casal enamorado trocando juras de amor.

– Eram namoradas, tinha um sentimento as unindo.

– Claro que não, ninguém era apaixonada por ninguém, era só um namoro sem maiores pretensões.

– Sem pretensões? Por que você estava mantendo a relação?

– Porque o sexo era bom.

Sam abriu a boca com perplexidade.

– Você a usava?

– Esse termo é horrível. Você acha que ela não aproveitava a situação também?

– Isso é errado.

– Isso o que? Fazer sexo sem sentimentos? Se for de comum acordo e tiver tesão pode ser bom.

Sam ficou em silêncio, assimilando.

– Sam, pare de me julgar, vamos voltar ao que interessa.

– Quanto tempo vocês namoraram?

– Uns quatro ou cinco meses.

– Tempo suficiente para criar um relacionamento.

– Foi só curtição, de ambas as partes, acredite.

– E você não desenvolveu nenhum sentimento por ela no decorrer da…

– Não, nada. – Theo interrompeu.

– Quando você a rever, não vai ficar balançada, nem nada do tipo?

– Talvez a peça em casamento.

– O que?

Theo riu.

– Sam, pare, ela é passado.

Silêncio.

– Você mentiu quando eu perguntei se você tinha alguém.

– Eu não menti, eu não tenho mais nada com ela, se você não tivesse citado o nome, não lembraria da existência desse ser tão cedo. Mas voltando ao assunto, o que Igor falou sobre Evelyn?

– Ela é uma espiã, repassa informações para a resistência.

– Jura? Quem diria… Ela não tem cara de espiã.

– Esses são os melhores espiões. Ela sabe que você faz parte da resistência? – Sam perguntou, curiosa.

– Não, não sabe. Não tínhamos muita intimidade.

– Só o suficiente para dormirem juntas. – Sam resmungou.

Após um estrondo e um clarão, a chuva caiu com força, uma chuva que parecia vir de lado, açoitando seus corpos com ajuda do vento.

– Era o que precisávamos… – Sam resmungou. – E ainda por cima essa perna…

– Foi na perna com a prótese?

– Sim, espero que não tenha rompido nada dos circuitos artificiais.

– Precisamos remover a bala.

– Saiu pelo outro lado.

– Ai, isso deve ter doído. – Theo enxugava a chuva do rosto com as costas da mão.

– Nem me fale.

– Já enxerga algo?

– Onde?

– A nossa frente.

– Sim, quer dizer, eu sei que a orla está a pouco mais de um quilômetro, em linha reta.

– E o barco deles estará lá, correto? – Theo disse.

– Espero que sim, não estou preparada para nadar de novo.

– Você sabe pilotar um barco?

– Deve ser parecido com um carro. – Sam parou a caminhada.

– O que foi?

– Me dê um segundo, a perna está me matando.

– Ok.

Sam estava curvada a frente, com ambas as mãos envolvendo a perna.

– Aproveite o tempo ocioso para pensar na melhor forma de abordar sua namorada quando chegarmos a San Paolo. – Sam disse.

– Ex namorada. Sim, pensaremos em algo, uma abordagem que não a assuste. E você parece ter treze anos às vezes.

– Como a conheceu?

– Nos corredores da Archer.

– De repente uma garota do RH chamou sua atenção?

– Ela é uma garota que desperta atenção. – Theo respondeu contendo um sorrisinho, Sam viu, e ergueu-se.

– Daí você a encontrou por acidente na sala de dados?

– Não, ela não trabalha com essas burocracias, ela é instrutora de ginástica laboral, tem formação em educação física.

– Ginástica laboral? – Sam voltou a caminhar com Theo.

– Você sabe o que é isso, certo?

– Sim, eu sei. Ela é da sua idade?

– Não, acho que tem uns 32 ou 33 anos. 34 talvez.

– Você não sabe a idade da própria namorada?

– Você consegue ser bem chata quando se esforça.

– Ainda estou digerindo essa descoberta.

– Você não tem o que digerir, temos que enxergar Eve como um elemento que pode nos ajudar, se Igor indicou, é porque ela deve ter informações quentes.

– Eve?

– Essa foi a única palavra que você ouviu?

– Ok, chegamos na orla. – Sam parou abruptamente.

– E então?

– Tem uma lancha. Venha, prepare-se, vamos entrar no mar.

– Como se eu já não estivesse ensopada… – Theo resmungou.

As duas entraram no mar negro, traspassando com dificuldade as ondas altas e espumosas, até entrarem no barco branco de última geração. Sam foi logo a cabine e encarou num longo silêncio o painel cheio de comandos.

– Que falta você me faz, Igor. – Sam apertava botões, puxava alavancas, clicava em comandos em várias telas, e nada acontecia.

– Ok, agora que você já se divertiu apertando coisas, tente o seguinte: coloque essa alavanca cromada a sua direita para baixo, no mínimo possível. Aperte esse botão verde no teto e espere a âncora subir completamente, na tela de comando selecione a direção que deseja sair e uns dez nós como velocidade padrão inicial. Por fim vá subindo a alavanca cromada devagar, mas devagar, ok?

– Você não está brincando, está?

– Por que não tira a prova?

Sam observou Theo por alguns segundos, a analisando, e fez a sequência de instruções dadas por ela. O barco começou a se mover devagar.

– O botão no teto não era verde, era azul. – Sam disse.

– Sinto muito pelo engano.

– Como aprendeu isso?

– Meus amigos tinham barcos, eu pilotava de vez em quando.

– Ah é?

– Eu gosto de pilotar coisas, sinto falta do meu carro.

– Você deve sentir falta de várias coisas, não é?

– Sim, você não?

Sam suspirou pesadamente.

– Coisas básicas.

Theo tateou pela ampla cabine, encontrando um banco acolchoado junto a parede, sentando-se.

– Como está sua perna?

– Me matando, mas acho que em vinte minutos já estaremos no cais, vou fazer um torniquete, ou algo do tipo. E tomar algo para a dor.

– Estamos perto? Enxerga o cais?

– Ainda não.

– Já amanheceu?

– Não, são quatro e meia agora. – Sam olhou para Theo com as sobrancelhas baixadas. – Você não disse que enxergava a claridade?

– Acho que estou com problemas técnicos… – Theo mexia a ponta do pé no chão, cabisbaixa.

– Você está ficando ainda mais cega? É isso que está me dizendo? – Sam dizia irritada.

– É o que parece.

– Mas que droga… – Sam voltou a olhar para frente, se aproximavam do pequeno cais.

– O que vamos fazer agora? – Theo perguntou.

– Pegar a estrada, quero encontrar essa garota o quanto antes.

– Você tem condições de dirigir por cinco horas? Sua perna está ruim e você nem dormiu nada desde ontem cedo, além de ter nadado uma maratona.

– Preciso ter.

Desembarcaram na praia minutos depois, Sam colocou Theo para dentro do carro, sentou-se no banco e pousou os braços sobre o volante, encarando o painel a frente, de forma desolada. Theo percebeu o silêncio.

– Está tudo bem?

– Não.

– O que foi? – Theo disse e espirrou.

Sam demorou para responder.

– Eu estou exausta, eu… Eu não aguento mais isso. E seu eu estiver correndo atrás de mentiras? – Sam desabafava.

– Você não tem escolha, Sam.

– Tenho, eu posso ficar sentada aqui, ou na areia de uma bela praia, esperando o dia treze chegar e tudo acabar de uma vez.

– Mas não é isso que você vai fazer.

– Hoje é segunda-feira. Quinta eu vou embora, quinta-feira tudo acaba, é o meu fim.

– Nada vai acabar na quinta-feira. Sam, ouça atentamente meu cronograma. – Theo tossia e espirrava.

– Que cronograma?

– O que faremos nas próximas horas. – Theo falava com determinação, ambas estavam com as roupas encharcadas e Theo tremia as mãos com frio.

– Theo, eu só tenho mais três dias, e estou sem nada, não tenho nada concreto, eu não encontrarei nunca essas matrizes, talvez nem existam.

– Em primeiro lugar, ligue o aquecimento, estou congelando.

– Ok.

– Você vai fazer o que eu disser?

Sam apenas exasperou.

– Samantha, você vai fazer o que vou falar agora?

– Vou.

– Certo. Você vai dar partida nesse carro, vamos sair desta orla e encontrar algum lugar abandonado para descansarmos. Vamos tomar um banho e vestir roupas secas e quentinhas. Cuidarei da sua perna e de qualquer outro ferimento que você tiver escondendo de mim, você tomará os remédios que estou tomando para a mão, e a dor na perna diminuirá. Vamos tentar dormir por pelo menos cinco ou seis horas, seu corpo precisa de descanso depois disso tudo, senão vai parar de funcionar. – Espirrou. – Pegaremos a estrada no meio da tarde, chegaremos em San Paolo a noite e faremos contato com Evelyn, vamos tentar marcar algum encontro, essa parte ainda precisamos desenvolver mais, mas vamos fazer o que for preciso para extrair pelo menos uma informação clara sobre a localização do bendito laboratório, fique à vontade para usar métodos não ortodoxos para extrair essas informações. E por fim seguiremos para a localização dessas porcarias de matrizes. Ficou claro?

Sam a fitou por algum tempo, voltou a olhar para frente, com as mãos no volante.

– Ficou.

Theo a tateou procurando sua mão, a encontrou no volante e a tomou com ambas as mãos.

– Ninguém vai desistir. – Theo disse com a voz suave.

– Não, não a essa altura do campeonato, eu vou lutar até o último minuto.

Theo sorriu discretamente, levou a mão até os lábios e beijou a palma demoradamente. E espirrou.

– Você ficou resfriada? – Sam perguntou.

– Talvez esteja ficando. – Respondeu esfregando o nariz vermelho.

– Ah não, você tem imunidade baixa, se ficar doente vai morrer rapidinho. Vou pegar uns remédios para você aqui atrás.

– Você anda muito pessimista.

– Tome, engula todos os três. – Sam entregou os comprimidos e água.

Theo tossiu e tomou os remédios.

– Obrigada pela preocupação.

– Sua namorada cuidava de você?

– Sam, ligue esse carro e vamos embora, já tivemos aventuras demais nesse lugar.

Na saída da cidade, encontraram um conglomerado com três blocos de prédios brancos, todos abandonados, alguns ocupados por desabrigados. Sam dirigiu até o último deles, que estava em pior estado, mas quase vazio. Subiu pelas rampas internas até o último andar, onde haviam algumas paredes demolidas. Estacionou o carro nos fundos do grande salão abandonado e com o chão molhado por conta das infiltrações.

– O que é aqui? – Theo perguntou, já tomando seu banho num quartinho transformado em banheiro.

– Parece um hospital, tem algumas macas metálicas espalhadas por aqui. Na entrada eu vi uma cadeira de rodas e aqui em cima tem nas paredes aquelas saídas de oxigênio. Tem uma luminária enorme também, redonda, parece aquelas de centro cirúrgico.

– Estamos num hospital? Ótimo, procure um médico que enxergue para cuidar de sua perna.

– Termine o banho, por gentileza. Vou preparar sua hidrometa.

– Não, hoje não quero. – Theo respondeu.

– Não está com dor na mão?

– Sim, mas ficarei apenas nos analgésicos hoje. Sugiro que você tome pelo menos um ml.

– Não, obrigada, não uso essas coisas.

Por volta do meio-dia, Sam dormia pesadamente no colchão colocado atrás do carro, não haviam janelas naquele lugar, a claridade era fraca. Um barulho vindo do carro fez Sam despertar, percebendo que Theo não estava ao seu lado.

Sentou-se assustada na cama, pode ver Theo dentro do carro, parecia mexer em algo no banco de trás.

– Theo? O que você faz aí?

Theo ergueu a cabeça, tomando um susto.

– Estou procurando biscoitos.

– Nós vamos comer algo na estrada, lembra?

– Eu sei, mas estou morrendo de fome.

– Quer ajuda?

– Não, já encontrei, obrigada. Quer biscoitos?

– Não. Você quase me matou do coração. – Sam voltou a deitar.

– Seria uma bela ironia, não? Volte a dormir.

– Venha dormir também.

– Irei quando terminar esse pacote.

Sam voltou a dormir, e Theo saiu do carro minutos depois.

***

– Comeu o suficiente? Não vamos comer de novo tão cedo. – Sam perguntou após deixarem um restaurante, seguiam pela supervia a caminho de San Paolo, era o meio da tarde.

– Bastante. Mas acho que não deveríamos gastar tanto dinheiro com bife com batatas fritas, a grana está no fim, não é?

– Promete não me julgar?

– Saímos sem pagar? – Theo sorriu.

– Não, eu usei dinheiro de Igor.

– Ele deixou com você?

– Não, peguei a carteira dele antes de abandonarmos o forte. Mas não tinha muito, ele estava usando o chip pessoal para pagar as coisas.

– Ah.

Silêncio.

– Viu, você está me julgando. – Sam reclamou.

– Não, não estou. Você agiu certo, aquele dinheiro não seria útil para ele, mas será para nós.

– Eu gostaria de um dia poder fazer algo por ele, quem sabe visitar seus pais, ajudar alguém da família.

– Já olhou a carteira dele? Quem sabe tenha algum documento com o nome dos pais. – Theo disse.

– Pegue aí na frente, no porta luvas.

Theo tateou o painel do carro, tomou a carteira e entregou a Sam, que verificou em todos os compartimentos, enquanto dirigia.

– Tem o nome dos pais aqui. Amadeu Mancini Tancredi, e Isolde Santos Tancredi.

Theo arregalou os olhos, incrédula.

– Você está falando sério? Você leu esse nome no documento de Igor? Tem certeza que é o pai?

– Sim, está aqui, filiação. Por que a surpresa? Reconheceu o nome?

– É o Amadeu, o melhor amigo de minha mãe. – Theo disse estupefata.

– Então você e Igor se conheciam?

– Não, só ouvia falar dele, Amadeu os mantinha na Colômbia para protegê-los.

– Você já sabia que Amadeu havia sumido?

– Não, eu falei com ele uns dias antes de me mandarem para o Circus, não sabia que havia morrido. – Theo tinha um semblante triste, corria seu polegar numa ranhura na porta do carro. – Eu gostava dele, Amadeu era como um segundo pai, era um bom amigo.

– Esteve ao seu lado quando sua mãe morreu?

– Esteve. – Theo respondeu com a voz embargada. – O tempo todo.

– Os dois amigos devem ter se reencontrado então. E Igor reencontrou o pai.

– Igor não deveria ter morrido… – Theo falava pensativa.

– Vamos fazer a busca dele ter algum sentido. Sabe qual foi o penúltimo pedido que ele fez?

– Não.

– Que eu sobrevivesse.

– Você vai. E o último?

– Que eu cuidasse da mocinha tatuada. – Sam sorriu.

Theo lançou um meio sorriso.

– Ele não deveria ter morrido… E não acredito que eu estava com ciúmes do filho de Amadeu.

– Ah, agora você confessa que estava com ciúmes?

– Não. – Theo respondeu sem jeito. – Foi modo de falar.

– Bom… Todos já se foram, estão num bom lugar agora.

– É… – Theo respondeu desolada.

– Qual sua religião? – Sam perguntou, segundos depois.

– No momento? Sou cega.

– Estou falando sério.

Theo maneou a cabeça, hesitando em entrar naquela conversa.

– Na infância fui católica, na adolescência flertei com a anglicana para acompanhar uma namorada, agora não tenho religião.

– Mas tem algum credo?

– Em mim, e é o suficiente.

– E sua fé? Para onde foi? Ainda tem fé, não tem?

– Não.

– Não se perde a fé, ela pode mudar de forma, mas ter fé é fundamental para todo mundo. E juro, não estou fazendo nenhuma ladainha religiosa, estou de mente aberta.

– Mas não tenho mais, simples assim, fico feliz por quem tenha.

Sam continuou guiando em silêncio por uns instantes, Theo deu como finalizado o assunto.

– Quando você desce do carro. – Sam dizia. – Você estende a mão, não estende?

– Sim.

– Você estende porque sabe que vou pegar a sua mão, e te conduzir, que vou tomar conta de você, não é?

– É.

– Você não me vê, mas estende a mão porque sabe que estarei lá. Isso é fé. Sinto informar que você tem fé.

– É uma boa analogia. – Theo respondeu com um sorriso.

– Não é analogia, fé não é exclusividade das religiões e seus dogmas, é muito mais amplo que acreditar em alguma divindade.

Foi a vez de Theo passar alguns segundos pensativa.

– Sabe, eu te julguei muito rápido.

– Como assim?

– Logo quando nos conhecemos você soltou uns pensamentos abomináveis e te julguei por eles, te reduzi a eles. E eu ignorei a possibilidade de você ser bem mais que aquelas palavras que foram colocadas na sua boca.

– Isso é um elogio?

– Conclua sozinha. – Theo suspirou antes de continuar falando. – Hoje em dia eu realmente gosto de quem você é, por inteiro. Ainda discordo de muitas ideologias e discursos retrógrados que você solta, mas você mostrou que eu te julguei cedo demais.

– É, acho que é elogio… – Sam sorriu de lado.

– Aí dentro tem uma mulher inteligente, questionadora, e nem um pouco ignorante.

– Está virando rasgação de seda.

– Eu posso piorar. – Theo ameaçou.

– Eu não te impediria.

– Além de inteligente, é espetacular na cama.

– Ok, agora você cruzou limites.

– E você deve estar vermelha.

– Percebeu? Achei que estava conseguindo disfarçar.

***

– Já pensou em algo? Chegaremos em duas horas. – Sam a interpelou.

– Pensei, me ajude a lapidar a ideia.

– Vá em frente.

– Precisaremos conquistar a confiança dela. Quer dizer, você precisa. Então tem que ter um argumento convincente. Eve gosta de carros esportivos, ela tinha uma Lamborghini que era sua grande paixão, se ela gostasse de mim um por cento do quanto gostava daquele carro… Bom, na verdade se ela gostasse de mim não seria correspondida, então melhor como as coisas eram mesmo, bilateralmente sem sentimentos.

– Theo, foco.

– Um dia roubaram sua Lamborghini amarela.

– Era amarela? – Sam a interrompeu.

– Era.

– Uma Lamborghini custa algumas centenas de milhares de dólares, correto? – Sam perguntou curiosa.

– Um pouco mais, foi presente dos pais. Bom, depois que a roubaram, seus pais ficaram furiosos, porque ela havia emprestado o carro a um amigo, foi assim que roubaram. Mesmo recebendo o seguro, eles resolveram dar um carro simples a ela, infinitamente mais barato que a Lamborghini, e ela nunca se conformou, falava nesse carro o tempo todo, era um saco.

– Onde você quer chegar?

– Você vai até a casa dela, vai dizer que é da polícia, e que encontraram o carro amarelo. Então a convencerá a ir até o galpão da polícia, ver o carro e assinar a papelada para resgatá-lo.

– Hum. – Sam assimilava o plano, tamborilando os dedos no volante. – Que galpão?

– Preciso desenvolver melhor esta parte. Mas é um bom plano, não acha?

– A princípio sim. Mas talvez ela não esteja em casa.

– Ela pratica ioga em casa nas noites de segunda.

– Entendi. E depois que ela estiver no galpão?

– Eu darei as caras. E tentaremos arrancar informações úteis. – Theo falava animada, virando o boné para trás.

– E se ela não falar?

– A pressionaremos, de uma forma talvez não ortodoxa.

– Estou autorizada a usar da força com sua namorada?

– Ex. Está, mas em último caso.

– Ok. – Sam respondeu com um sorrisinho sádico.

– Me ajude a pensar em algum lugar para levá-la. – Theo retomou a conversa.

Sam freou abruptamente, pegando Theo de surpresa.

– O que foi? Quase bateu? – Theo perguntou.

– O trânsito parou de repente, está um pouco congestionado a nossa frente.

– Bem-vinda a San Paolo, a cidade com maior número de automóveis por habitante.

– Um monte de latas velhas, isso sim. – Sam resmungou.

– Claro!

– O que foi? Teve uma ideia?

– Tive. Ferro velho, nós vamos levá-la a um ferro velho!

– Qualquer um?

– Não, eu conheço um no entorno da cidade, é um pouco distante, meio isolado, e é enorme, ninguém vai perceber nossa presença, eu conheço o dono, ele é da resistência, e sei que ele mora em outro bairro.

– Como conhece esse ferro velho? Já foi lá?

– Já, fui em algumas reuniões lá dentro.

– Da resistência?

– Sim.

– Não é um local vigiado?

– Em dias comuns, pouco. – Theo disse.

– Certo, repassando o plano: chegaremos por volta das sete ou oito da noite em San Paolo, vamos até a casa dela, você fica no carro, eu conversarei com ela. Contarei que seu estimado veículo amarelo, aquele que ela amava mais que a própria namorada, foi recuperado, e que a aguarda numa instalação da polícia. Darei o endereço a ela, e a seguiremos até o local ermo, discretamente, porque eu não posso levá-la nesse carro acabado, que nem tem mais para-choques, porque um sentinela o arrancou.

– Muito bem, oficial. Você até que é inteligente as vezes.

– Quando ela perceber que não tem carro algum a esperando, você surgirá e comunicará que está viva e não é mais sua namorada, destruindo dois sonhos da moça ao mesmo tempo.

– Não é um bom ponto de vista. – Theo disse, num tom de desaprovação.

– Se ela não cooperar, usarei meus métodos de extração de dados, com humanidade, é claro.

– Métodos estes que eu já conheci e não achei nem um pouco humano.

– Seu caso foi especial, havia sentimentos envolvidos.

– Se você gosta de mim e fez aquilo, não quero imaginar o que pode fazer com uma ex namorada minha, que você já demonstrou não nutrir afeto.

– Só em último caso, fique tranquila.

***

Era fácil perceber que adentravam San Paolo, a grande metrópole da Nova Capital. Haviam telas gigantes nos ares, transmitindo propagandas e informações úteis, formadas por nuvens de nanobots, que se desintegravam e se formavam em outro ponto em poucos segundos.

– Essa cidade é poluída. – Sam reclamou, ao perceber uma névoa acinzentada pairando no alto dos arranha-céus de mais de duzentos andares, o sol estava se pondo.

Naquela área os prédios eram sofisticados, os que não eram inteiramente revestidos por vidros, possuíam fachadas dinâmicas, simulando cores e texturas. O trânsito era intenso em vias em vários níveis, traspassando umas por cima das outras, formando um emaranhando suspenso de estradas movimentadas, todas as vias eram ornamentadas por arcos azuis e vermelhos.

Como não poderia ser diferente, a vigilância do governo era ostensiva. As motos brancas voadoras transitavam em baixa velocidade, com suas dezenas de câmeras e microfones, observando a movimentação das pessoas pelas passarelas exclusivas para pedestres, e nos chamados pontos de convergência, onde várias passarelas desembocavam em áreas abertas, semelhantes a praças.

– O que aconteceu com as calçadas? – Sam questionou Theo, ela dirigia numa faixa para tráfego lento, observando aquela cidade tão diferente de tudo que já vira.

– Removeram, para dar mais espaço aos carros.

– Os pedestres só andam por estas passarelas agora?

– As calçadas agora são dentro dos prédios. Não é assim nas grandes cidades na Europa?

– Acho que não.

– Como é em Londres?

– Nunca fui a Londres. – Sam respondeu encabulada.

– Não? Mas é perto de Sevenoaks, não?

– Uns sessenta quilômetros.

– Só? E você nunca foi?

– Meu pai dizia que era a cidade da perdição, que não tinha nada de bom para nós lá.

– Eu já fui a Londres. – Theo disse.

– Sério?

– Tecnicamente sim, mas não me recordo, era pequena demais.

– Foi visitar com seus pais?

– Fui com minha mãe, nós morávamos em Lausanne, na Suíça.

– Você e sua mãe moravam na Suíça?

– Moramos por uns dois anos. Foi uma época de manifestações violentas por toda Nova Capital, minha mãe contava que haviam tentativas de sequestros aos políticos e seus familiares, que não era seguro ficarmos por lá.

– Quem era político? – Sam perguntava com interesse.

– Na época meu pai era deputado, e meu avô senador.

– Avô paterno?

– Não, materno, vô Daniel.

– E o que aconteceu com as manifestações? Diminuíram com o tempo?

– Os guias de história contam que os movimentos foram enfraquecendo e recuando. Já a resistência conta que os grupos que iam as ruas foram massacrados pela polícia do governo, os líderes foram executados ou sumiram, e reprendiam cada vez com mais truculência.

– Foram forçados a se calar e sair das ruas. – Sam arrematou.

– Exatamente, minha cara Samantha.

– Hoje em dia não deve existir manifestações nem nada do tipo, suponho.

– É proibido, mas às vezes estoura um foco aqui, outro ali, sempre repreendido com bastante violência, e um grande número de mortos e feridos. A polícia tem autorização para acabar com o levante como quiser, inclusive com métodos letais.

– Então é proibido querer mudanças? Sair às ruas reivindicando coisas plausíveis?

– Aqui é.

– Que absurdo.

– Autoritarismo, já ouviu falar?

– Por falar nisso, estamos sob forte vigilância dessas motos brancas, e dos pássaros espiões. – Sam a alertou.

– Eu sei, precisamos redobrar o cuidado por aqui. Estamos perto da casa dela?

– Não muito, uns trinta quilômetros. Você deve conhecer bem o caminho, não é?

– Sim, eu não queria que meu pai soubesse que eu estava tendo um caso com uma funcionária dele, não podia levá-la para minha casa, então eu frequentava o apartamento dela.

Silêncio.

– Então… Instrutora de ginástica? – Sam voltou a falar.

– Sim, instrutora de ginástica laboral. – Theo respondeu, já compreendendo o tom inquisidor de Sam.

– Ela realmente gosta de malhar?

– Gosta sim.

– Evelyn deve ter um belo corpo então.

– Tem sim. Bom, você irá conhecê-la em alguns minutos. – Theo segurava o riso.

– Está com saudades?

– Sam, eu sequer me recordava dela. Pare de pensar bobagens e pense apenas na abordagem, ela precisa acreditar que você é policial.

– Serei convincente.

– Você tem cara de policial?

– Não sei, mas meu uniforme tem.

– Que uniforme?

– Lembra que roubei uma viatura policial uma vez? Havia um traje completo dentro, resolvi guardar de recordação, antes de abandonar o veículo.

– Você vai se vestir de policial? – Theo indagou.

– Não se preocupe, o traje é do meu tamanho, será um bom disfarce.

– Queria ver essa… – O que foi isso? – Theo quase bateu a cabeça no vidro com a freada brusca de Sam.

– Ah não…

– O que foi?

– Não ouve? Tem centenas de pessoas vindo em nossa direção, com cartazes e faixas, bradando alguma coisa.

– Uma manifestação??

 

Ímpio: adj.: herege, incrédulo, aquele que não tem fé.

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28 comentários Adicione o seu
  1. Autora, alguém vai morrer no último capítulo?
    Pelo o que li no primeiro (e reli 5 vezes) alguém vai sofrer pela morte de alguém (o não? Me diga você)
    A parte: Então é assim que se morre, antes de morrer?
    E a parte: Aguardo impacitemente pela confirmação daquilo que não quero acreditar .

    Isso meio que confirma a perda de uma das personagens ? (Talvez, me diga pff , estou ansiosa demais pra esse desfecho).
    É… Vai ter 2° temporada? O.o sla… Vai que! :p kkkk

    Acho que era só isso 🙂 (se for responder o comentário, pode me chamar de Carol ) 😀

    Bjsssssssss :* :* :*

    1. Olá minha cara Carol, sinto ter que responder que sim, teremos mortes no último capítulo.
      Você está certa, haverá um grande sofrimento finalizando a primeira parte, alguém chorando a morte de alguém, mas não posso dizer mais do que isso por enquanto.
      Haverá uma segunda parte, começarei a escrever provavelmente em setembro.
      Acho que vou fazer um enquete sobre quem morre no fim 😉
      Bjinhos e obrigada!

  2. Adoro esse tipo de diálogo entre as duas, deixa a história um pouco mais leve, pq acho que os próximos serão tensos, por ser reta final. Fiquei preocupada com essa manifestação temo que seja algo a complicar ainda mais a aventura, já que as coisas nunca são fáceis para elas.

  3. Caramba! Nao consegui conter a ansiedade e esperar sua postagem no abc lés, vim devorar a hsitória em um dia e tô completamente encantada com a Theo e a Sam. História muito envolvente, bem descrita e detalhista. Você tem um dom incrível, Cristiane. Só te faço um pedido encarecido: não mata ninguém! kkkkkkk. To aqui ansiosa pelo desenrolar da história! 😉

    1. Olá Marília!
      Seja bem-vinda ao meu humilde blog 😉
      Já leu tudo? Que rápida!
      Não posso prometer finalizar a história sem mortes, teremos um bom tanto de sangue, prepara o coração.
      Obrigada pela leitura e comentário, bjos!

  4. Oi Cris! já tinha lido Amigos de Aluguel lá no Abc Les e agora estou acompanhando o desenrolar de 2121. Adoro a forma como você escreve, de uma leveza e fluidez excelentes. Uma escrita de qualidade, de quem realmente parece levar a sério o ofício de escrever. Ganhou mais uma leitora assídua no seu blog. Bjo

    1. Oie Tati!
      Muito obrigada pelos elogios, fico feliz em saber que estou proporcionando uma boa leitura 😉
      Seja bem-vinda, espero te ver sempre por aqui, viu?
      Bjos e obrigada!

  5. Meu Deus Cristiane, estou viciadaaaa… Comecei a lê 2121 há dois dias atrás e já estou aqui (confesso eu estava lendo no horário de trabalho rs).
    O fato é que amo literatura (principalmente de temáticas lésbicas ) mas tenho certa preguiça em comentar, sorry kkkkkkkk.
    Resumindo, a qualidade de suas histórias me obrigada a comentar (assim como na "A lince e a Raposa ") e dizer que 2121 é um deleite e estou ansiosa pelo próximo capítulo. Parabéns…

  6. Menina, só não vai arranjar uma demissão por estar me lendo no horário de trabalho, viu? rs
    Tudo bem sobre não comentar, fico feliz em saber que você está me acompanhando, apareça de vez em quando nem que seja para dizer um 'oi, continuo por aqui'. 🙂
    Obrigada pelos elogios, fiquei meio vermelha aqui.
    Bjão!

  7. Cristiane Schwinden Esse momento de paz e amor, estive pensando no que o pessoal pediu também 😀 será o momento em que a Theo vai se permitir ser tocada pela Sam? Olha, já avisando… se for isso, que responsabilidade a sua! Ok, sem pressão, mas não queria estar na sua pele.
    Precisamos dos minimos detalhes, as sensações, o pensamento, tanto da sam como da Theo. Que tal um capitulo todo com esse momento? Na primeira parte os pensamentos da Theo, e depois da Sam. Vai ser o primeiro momento das duas… rs 😀

  8. Amo d+, tudo muito perfeito!! Cris, adoro tuas histórias, desde ‘Amigos de Aluguel até ‘A Lince e a Raposa’. Aliás, ‘A Lince e a Raposa é uma das minhas histórias preferidas de todos os tempos, já li por três vezes e não canso daquelas duas. ?? Bom, vc se supera com 2021, é definitivamente incrível. Parabéns! ?

    1. Oi Ana Clara!
      Incrível é você que leu A Lince 3 vezes… rs
      Muito obrigada por me ler, e pelos elogios tão bondosos, espero ter você por essas bandas por muito tempo.
      Bjos!

  9. *Corrigindo a mensagem anterior onde digo 2021. Desculpa, estou atrasada 100 anos. ?? Quis dizer que 2121 é massa!!

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