Estranhos no Paraíso e Sunstone: duas HQs escritas por homens

Quando me falam sobre um homem escrevendo personagens lésbicas sempre fico com um pé atrás; por mais bem intencionado que ele esteja, não é o lugar de fala dele. Mas tudo bem, radicalismos nunca são bem-vindos, por isso eu baixo a guarda e me permito conhecer algumas obras com essa questão.

A única coisa que não engulo de jeito nenhum é homem escrevendo histórias para “ajudar meninas lésbicas a se descobrirem e se aceitarem”, porque para essas coisas é preciso sim ter vivência para poder escrever de forma real. Um homem nunca entenderá o que uma mulher lésbica passa ou passou.

À parte esse quesito, acredito que eles possam criar personagens lésbicas verossímeis e com profundidade, hoje vou me ater a duas HQs: Estranhos no Paraíso e Sunstone.

Capa da edição 3 da quarta temporada

Estranhos no Paraíso é uma série em quadrinhos escrita e ilustrada pelo americano Terry Moore, iniciada em 1993 e finalizada em 2007, porém com um revival agora em 2018. Na 1ª temporada foram 3 volumes, na 2ª foram 13 volumes, na 3ª foram 90 volumes, e agora nesta nova fase, chamada de XXV (em homenagem aos 25 anos da série), já somam 7 volumes, com previsão de finalizar em definitivo no número 10, em março de 2019. E eu acabei de ler tudo, todos os 113 volumes, em sua maioria em inglês (comprei alguns em sebos online, o resto li nesse site).

A história é bem complexa e cheia de mistérios um tanto inacreditáveis, e gira em torno de Francine, uma garota heterossexual que sempre se envolve com homens que não valem nada, além disso ela tem problemas com o peso, afetando sua autoestima. Katchoo, a amiga lésbica e apaixonada por ela, é ex-prostituta, ex-ninja, ex-milhares de outras coisas mirabolantes. E David, um cara legal e bonzinho demais que é apaixonado por Katchoo.

Essa matéria no Minas Nerd fala sobre a bissexualidade e a descoberta da sexualidade que a série traz, mas após ler os fucking 113 volumes, não vejo nada disso que foi mencionado. A história é ótima? É sim. Te prende, te faz rir, faz passar raiva, faz torcer (MUITO) para que essas duas fiquem juntas logo, mas não vejo representatividade de nada ali. Francine e Katchoo ficam juntas apenas no volume 106, de uma forma um tanto irreal, foi como se um dia Francine acordasse e decidisse ser bissexual (ou lésbica) e se declarar para a amiga, que a essa altura já comeu o pão que o diabo amassou e vive um poliamor com David e uma amiga (poliamor extremamente forçado e que me deu náuseas, dá para perceber que era o autor fetichizando ali).

Sunstone

Mas vamos falar de coisa boa? Existe essa HQ maravilhosa chamada Sunstone, escrita e ilustrada pelo croata Stjepan Sejic, com auxílio de sua esposa, Linda. Ele começou a postar online em 2011 e finalizou ano passado, porém continua com um spin off chamado Mercy, com outros personagens da trama. Eu li tudo no Deviantart do autor, mas ele removeu de lá, agora você pode ler tudo de graça lá no Dropobox dele (Sunstone vai até o volume 5), porém me tornei tão fã que importei todos os 5 volumes da Amazon americana.

Sunstone é uma HQ erótica, que retrata o encontro de duas praticantes de BDSM (sadomasoquismo), Lisa e Ally. Ambas até então heterossexuais, resolvem experimentar as “cenas” de BDSM entre elas, e a coisa foge do controle: elas se apaixonam.

Qual a diferença entre as duas HQs?

A delicadeza com que Stjepan lida com a descoberta da sexualidade, a profundidade dos diálogos, os medos tão bem retratados, a insegurança com o desconhecido que costuma ser tão à flor da pele em nós, tudo foi muito bem colocado naquele turbilhão que elas experimentam. Eu esperava alta fetichização lésbica (até porque é uma HQ erótica) vinda de um nerd punheteiro, mas não foi nada disso que eu vi nesses 5 volumes, é imersão total.

Eu não me vi representada em nenhuma personagem de Estranhos no Paraíso, até porque o autor dá a entender que Katchoo só é lésbica até conhecer o homem certo: David, que só sai do caminho delas quando morre (desculpe o spoiler).

Estranhos no Paraíso já ganhou diversos prêmios, inclusive o Eisner Awards em 1996, e não quero tirar o mérito dela, Terry Moore tem bastante criatividade e sabe criar roteiros que prendem a atenção, com plot twists ótimos e tudo muito bem amarrado. Foi o que me salvou durante o período de eleições, ao invés de ficar nas redes sociais passando raiva, eu ficava devorando essa saga. Apesar desses problemas de representação deturpada, todos ali são aprofundados e tem personalidade própria muito bem delineada. Mas… Dá para perceber em cada palavra que aquilo foi escrito por um homem hetero.

Em Sunstone a imersão é tão grande que você esquece que aquilo que você está lendo (e vendo, Stjepan desenha de forma brilhante) é ficção, você esquece que foi escrito por um homem (com a ajuda da esposa), esquece que BDSM é um tema polêmico e mergulha nas DRs de Ally e Lisa, fica impossível não se apaixonar por elas.

Estranhos no paraíso, 106

Nessa nova temporada de Estranhos no Paraíso (XXV), eu imaginava que finalmente eu teria um pouco de regozijo com o tão esperado casal Katchoo e Francine juntinhas e tendo bons momentos românticos, mas, apesar delas estarem casadas, elas não se veem em nenhum momento desses 7 volumes. O plot é uma das coisas mais sem pé nem cabeça que já li, e gira em torno de um “pergaminho escrito por Cleópatra com cálculos matemáticos que podem ajudar a criar uma bomba devastadora”. Surreal, no pior sentido.

Sobre Sunstone, parece que após finalizar a saga Mercy, no ano que vem, Stjepan vai escrever um último volume finalizando as duas histórias, que se encontrarão nesse final. É o que dizem os rumores, e será reconfortante ver mais um pouquinho desse casal improvável que me conquistou.

Continuo de baixa guarda, se aparecer mais alguma HQ com protagonista lésbica é bem provável que eu devore, mas adoraria ver mais HQs feitas por mulheres. Apesar dos pesares, recomendo fortemente a leitura de ambas as histórias citadas aqui, ambas são envolventes e instigantes, são duas obras de arte do mundo dos quadrinhos.

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