Capítulo 60 – Supervivente
A nevasca havia parado, a escuridão persistia. Passava das quatro da madrugada naquele canto distante da cidade gélida, e um corpo mal agasalhado e tomado por sangue jazia no patamar em frente à porta de uma casa repleta de flores na varanda.
***
Stefan e Virginia haviam retornado da delegacia na tarde anterior com um desânimo crescente. Nada além daquela peça de roupa encontrada num lago havia sido encontrado ou descoberto, as filmagens do momento do sequestro continuavam sendo analisadas, mas ninguém fora reconhecido. As buscas no lago, executadas por mergulhadores, haviam sido pausadas e retornariam naquela manhã.
A advogada acordara um pouco antes das seis da manhã, sabia que não conseguiria voltar a dormir, o desaparecimento de Theo estava mexendo com seus nervos e sono. Virginia saiu da cama de forma delicada, no intento de deixar Stefan dormir mais um pouco.
Preparou um café e o bebia na mesinha da cozinha, enquanto vasculhava seu comunicador pelas notícias sobre o caso do sequestro, mas a imprensa parecia mais interessada em especular a ligação do presidente Hover com o sumiço de Theo do que averiguar o sequestro em si.
– Logo agora, Theo… Logo agora que te reencontrei. – Virginia lamentava em voz baixa, para si mesma.
Enquanto isso na Nova Capital, a população cada vez mais se unia aos militantes da resistência, um levante popular que engrossava a olhos vistos, o povo pedia o afastamento do presidente, clamava pela antecipação das eleições, que seria em julho.
Os amigos que estavam no Brasil tiveram suas vidas duplamente atingidas. O caos visto em toda parte do continente bagunçava o dia-a-dia de todos, e para Maritza, John, Letícia e Daniela, o desaparecimento de Theo havia deixado um silêncio pesaroso entre todos.
Michelle chegaria à Sibéria naquela tarde, a vinda dela era vista de forma esperançosa por eles, alguém com poder real nas mãos poderia fazer o caso receber mais atenção da polícia e atrai também o engajamento de algum órgão internacional.
Stefan entrou na cozinha com o cabelo desgrenhado e olheiras. Deu um beijo na têmpora de Virginia e encheu sua caneca com café, sentando ao seu lado.
– Fui eu que te acordei? – Ela perguntou.
– Não. – Stefan respondeu fazendo um afago rápido na mão dela.
– Continuamos sem novidades. – Virginia comentou, apontando o comunicador.
Stefan apenas assentiu, balançando a cabeça. Após um instante de silêncio, Virginia voltou a falar.
– Será que Sam sabe?
– Deve saber, elas assistem um pouco de noticiário todos os dias.
– Se o corpo aparecer nos próximos dias… – Virginia dizia num tom baixo e triste. – Eu não sei o que vai ser desse julgamento.
Stefan ouviu e baixou os olhos na direção da caneca entre suas mãos, refletindo.
– Estatisticamente, as vítimas de sequestro costumam ser mortas nas primeiras 48 horas. – Stefan dizia. – Ainda estamos dentro destas 48 horas, acredito que temos boas chances até o anoitecer.
– Se a polícia for mais competente.
– Eu acho que ela ainda está viva.
– Eu também acho. – Virginia concordou. – Mas se foi a mando do Hover…
– Seria burrice, não acho que foi ele.
– Mike?
– Talvez, é meu palpite mais forte. Ele não estava escondido com Claire no Rio, ninguém sabe o paradeiro dele. – Stefan refletia.
– Mike matou Meg… – Virginia lembrou. – Tenho medo do que ele seria capaz de fazer com Theo, ele a odeia.
– Eu sei, eu fiquei sabendo das coisas que ele já aprontou. E ainda por cima teremos que enfrentar esse calhorda no tribunal.
– Foi um absurdo o juiz ter aceitado Mike como testemunha de acusação. – Virginia reclamava. – Ele foi expulso da corporação com acusações gravíssimas.
– Tudo abafado pelo pai, o Coronel Phillips.
– Que também estará no julgamento. Ainda bem que temos o General Turner acima desse coronel corrupto.
– O General Turner está nos ajudando como pode, ele mandou alguns soldados se unirem às buscas por Theo, sabia? – Stefan indagou.
– Não. Quanto mais gente procurando, melhor.
Stefan concordou balançando a cabeça, já com o olhar perdido em algum ponto sobre a mesa.
– Onde essa garota se meteu?
***
Um pouco antes das seis da manhã, com um sol tímido entre nuvens e toneladas de neve cobrindo a paisagem, Harry abriu a porta da frente da sua casa, no intuito de ir comprar pão para o café da manhã dele e do irmão, Dimitri. A esposa estava num plantão noturno no hospital.
Assustou-se ao ver um corpo caído diante de si, com as pernas sobre os degraus que levavam à porta, estava de bruços e com a roupa bastante suja de sangue, percebeu ser uma garota. Abaixou-se cautelosamente e mexeu no ombro tentando acordá-la, mexeu novamente, com mais energia, mas nada aconteceu.
Virou o corpo para cima, a pele estava pálida e arroxeada, repleta de hematomas e sangue já seco em seu rosto e pescoço. Estava parcialmente desfigurada por inúmeros ferimentos e cortes, os lábios já estavam num tom escuro.
Harry, um homem corpulento de aparentes quarenta anos e barba arruivada, arrastou o corpo para dentro de sua sala, não sem antes dar uma olhada atenta em todas as direções. Era cedo, não havia ninguém circulando por sua rua, nem vizinhos observando aquela cena.
Largou o corpo sobre um tapete felpudo e surrado em frente ao sofá, ajoelhou-se ao seu lado e moveu o rosto dela de um lado para outro, tentando reconhecer aquela mulher.
– Dima! Dima, dê um pulo aqui. – Harry disse já de pé.
– Já vou!
Dimitri, um jovem homem de quase trinta anos, mas que aparentava ser um garotão de bochechas vermelhas, apareceu na sala, ainda vestindo sua camisa.
– O que foi? – Ele viu o corpo no chão. – O que é isso??
– Não sei, acho que a Bratva anda desovando corpos nas varandas dos outros.
– Você viu?
– Não, estou especulando.
Dimitri se aproximou, a fitando do alto.
– Ela está viva?
– Acho que não. Não sei o que fazer, se chamarmos a polícia podem nos incriminar de alguma coisa.
– Mas não fizemos nada. Não foi você que a matou, foi?
– Claro que não.
– Está morta mesmo?
– Não sei. – Harry disse.
– Você foi enfermeiro por quase vinte anos, não sabe dizer se alguém está morto?
– Sim, eu sei.
Harry ajoelhou-se ao lado dela e verificou a pulsação em seu pescoço.
– Tem pulsação, pouca, mas ainda tem.
– Então temos que fazer algo, brat (irmão, em russo).
– Se levarmos ao hospital podem nos fazer perguntas, não quero colocar nossa família numa situação de risco.
– Você pode fazer algo, não pode?
Harry, ainda ajoelhado, fitou o corpo analiticamente.
– Não sei, acho ela está morrendo de hipotermia. E tem um ferimento nas costas, me parece que foi esfaqueada.
– Harry! – Dimitri abaixou-se repentinamente, assustado. – É ela! É Theo!
– Quem?
– Agora eu a reconheci, é minha amiga, Theo!
– Aquela menina da cafeteria?
– Sim! Faça algo, por favor!
– Não havia reconhecido antes? Talvez não seja ela.
– Ela está com o rosto machucado e cheio de sangue, mas é ela sim! Veja.
Dimitri ergueu a manga das blusas que ela vestia, exibindo o braço tatuado.
– Viu? Ela tem os braços tatuados, eu vi uma vez em que ela subiu as mangas enquanto trabalhava.
– Então você sabe o que aconteceu?
– Não, eu não faço ideia. – Dimitri segurou firme no braço do irmão. – Harry, por favor, faça algo, não deixe Theo morrer, ela é legal, ela sempre conversa comigo.
– Dima…
– E me dá café de graça!
– Ok, ok, vamos fazer o seguinte: você vai encher a sua banheira, o mais rápido e o mais quente que puder, vou levá-la para sua cama, entendeu?
Dimitri apenas balançou a cabeça rapidamente e correu para o banheiro. Harry tomou Theo nos braços e a colocou sobre a cama de solteiro do irmão, a cobriu com uma colcha azul repleta de bordados típicos da região.
Menos de cinco minutos depois, de dentro do banheiro, Dimitri avisou que a banheira estava pronta. Harry entrou no recinto com Theo já sem roupas, e a colocou dentro da água.
– Você vai ficar responsável em manter a cabeça dela para fora da água, para que não se afogue, entendeu? – Harry disse, mas Dimitri apenas fitava Theo de forma pasmada.
– Dima? Respeite sua amiga, não olhe para ela assim sem roupas.
– Desculpe. – Virou o rosto. – Eu tenho que segurar a cabeça dela?
– Sim, fique atrás da cabeceira, seguro o rosto dela acima da água, uma mão no rosto e a outra no queixo.
– Ok.
– Você consegue?
– Consigo.
Harry buscou seu comunicador no quarto e mediu a temperatura dela, encostando em seu pescoço.
– Continua com 27 graus, eu havia medido no quarto.
– Ela vai morrer? – Dimitri perguntou, enquanto mantinha o cabeça dela para fora da água, recostada numa toalha enrolada.
– Acho que não. Mas a temperatura precisa subir logo.
– O que a gente faz agora?
– Espera e torce.
– Posso rezar?
– Pode, mas não em voz alta. – Harry levantou-se da lateral da banheira e apanhou uma toalha que estava pendurada.
– O que você vai fazer?
– Vou limpar o rosto dela. Continue segurando.
Harry passou alguns minutos molhando a toalha na água quente e a limpando, Dimitri observava as tatuagens.
– Ela tem um monte de tatuagens, veja só, um montão. – Constatou.
– Tem sim.
– Ela disse que essa é nova. – Dimitri disse apontando a tatuagem no peito.
– Dima! Não solte a cabeça dela!
– Desculpe. Você pode tirar a temperatura dela novamente?
Harry tomou o comunicador e fez o solicitado.
– Trinta. Está subindo. – Falou com confiança.
– Quando estará bom?
– Quando chegar a uns 33 vou colocá-la na cama enrolada em uns cobertores.
– Que horas a Ekaterina chega do plantão?
– Meio-dia. E eu ainda não sei o que dizer a ela quando chegar.
– Por que não pode dizer a verdade?
Harry ficou um tempo em silêncio.
– Não sei o que ela vai pensar em abrigarmos uma estranha ferida, essa garota pode estar envolvida com a máfia, não foi nada prudente o que fizemos.
– Theo não é da máfia, ela faz cafés.
– Quem fez isso com ela estava muito zangado, essas pessoas podem estar ainda atrás dela.
– A gente não conta para ninguém que ela está aqui.
Harry suspirou longamente com a toalha em mãos, o rosto dela já estava sem vestígios de sangue, mas continuava inchado e repleto de escoriações.
Aguardou alguns minutos e tirou a temperatura: 32.
– Eu vou buscar uns cobertores e uma muda de roupa da Ekaterina para ela, você continue aí, eu já volto.
***
– Quem vai buscar Michelle no aeroporto no final da tarde? – Stefan questionou Virginia enquanto assistiam as notícias na tela da sala, era onze da manhã.
– Não sei, acho que ela vai alugar um carro.
Stefan largou seu comunicador ao lado, no sofá, bufou antes de falar.
– Não consigo ficar aqui nesse apartamento esperando as notícias chegarem, deve ter algo que possamos fazer, eu estou quase colocando uma roupa de mergulho para pular naquele lago e ajudar nas buscas.
– Podemos ir à delegacia daqui a pouco, ir novamente no consulado também.
Stefan inclinou para frente, esfregando o rosto.
– Estamos quase sem dinheiro, logo não teremos nem como nos locomover. – Stefan reclamou.
– Eu sei que Theo odiava isso, mas em último caso vamos conversar com Michelle.
– Falta menos de um mês, Virginia, menos de um mês para acabar logo isso, para que esse julgamento aconteça e tenhamos uma decisão, e acontece isso. – Stefan desesperava-se.
– Vão encontrá-la, e não será no lago, a encontrarão viva. A qualquer momento podemos receber uma ligação da delegacia dizendo que ela está lá, que a acharam.
– E Sam? Meu Deus… Ela deve estar num estado lastimável.
***
Sam engoliu rapidamente apenas parte do seu almoço e correu para a sala onde ficava a tela, que ainda estava desligada. Sentou-se numa das cadeiras da frente e ficou ali aflita, olhando a tela negra, balançando-se para frente e para trás.
Pouco depois já tinha a companhia de Nira de um lado, e Svetlana do outro.
A tela foi ligada no horário de sempre, e desenhos foram exibidos, deixando Sam cada vez mais em pânico.
– Pelo amor de Deus! Chega desses desenhos infernais! – Bradou alterada.
– Eles não tem culpa, primeiro tem isso. – Nira disse.
Minutos depois o noticiário iniciou-se, e já na escalada Sam ficou sabendo que o caso não havia avançado.
…veja também hoje: a polícia não faz avanços no caso do sequestro de Theodora Archer e o presidente da Nova Capital autoriza o envio de diplomatas para a Sibéria para acompanhar o caso de perto…
– Não! Nada! Não a encontraram ainda, eu não acredito! – Sam, já de pé, chutava uma das cadeiras.
– Hey, sossega aí vadia, tem gente querendo assistir a tela aqui atrás. – Uma interna mais ao fundo reclamou.
Sam foi trotando para cima da mulher, sendo presa pela cintura por Svetlana.
– Pare com isso, Samantha! – Svet a repreendeu. – Ir para a solitária não vai ajudar em nada. Pense, porra!
– Theo continua sumida. – Sam falou ofegante e com os olhos molhados. – Eu preciso sair daqui.
– Daqui a gente só saí absolvida ou num saco plástico.
– Eu vou traçar um plano de fuga. – Sam disse em voz baixa, num canto da sala.
– Vão te matar, já morreu gente tentando fugir.
– Eu andei pensando em algumas coisas, talvez eu consiga fugir num desses caminhões que entram e saem daqui.
– Se fosse fácil todo mundo já teria tentado.
– Já tentaram para saber?
– Já, já tentaram. Uma nazi foi triturada quando tentou fugir no caminhão que recolhe o lixo. A irmã de uma conhecida minha foi pega assim que o caminhão de hortaliças saiu pelo portão, a pena dela aumentou em oito anos.
Sam esfregou os olhos com raiva e impaciência.
– Me ajuda a fugir, Svet. – Implorou.
– Tentar fugir daqui é loucura, você só vai piorar sua situação. Ou bater as botas.
– Vem cá, acalme-se. – Nira aproximou-se e a abraçou. – Não subestime sua namorada, ela já deve ter algum plano para fugir dos sequestradores, só está esperando o momento certo para isso.
– Você acha? – Sam perguntou esperançosa, já desfeita do abraço.
– Pelas coisas que você nos disse, eu aposto minhas fichas nela.
– Ouça a Nira, ela está falando uns troços legais, eu concordo com ela. – Svetlana concordou.
– Talvez até ela já tenha fugido, mas ainda não encontrou socorro.
***
Passavam vinte minutos do meio-dia, Theo acordou com os sentidos ainda dormentes, a cabeça sem processar direito o que via. Estava coberta por no mínimo quatro cobertores e uma colcha azul bordada de vermelho, mas não fazia ideia de onde estava.
Observou atentamente e com uma sensação aterrorizante o quarto onde estava. Um guarda-roupas não muito grande, com marcas de uso e arranhões. A cama de solteiro onde estava coberta até o pescoço. Cortinas azuis com estampas de sorvetes.
Colocou os braços para fora dos cobertores devagar, o corpo inteiro doía. Correu os dedos pelo rosto, sentindo alguns curativos. O olho esquerdo estava com um grande curativo o tamponando.
– Que raios aconteceu comigo? – Resmungou sentindo uma dor aguda no ferimento das costas, quando moveu-se um pouco debaixo das cobertas.
Tentou levantar da cama, mas um pequeno movimento fez o corpo e a cabeça estremecerem de dor. Desistiu, olhava novamente ao redor tentando lembrar do que havia acontecido.
– Eu fui sequestrada? Esse é o cativeiro? – Fechou os olhos com força, a cabeça latejava e não permitia que pensasse com razão.
A porta do quarto se abriu e uma mulher de longos cabelos negros entrou, com semblante sério, porém com curiosidade também.
– Togda vy prosnulis’. – Ela disse, e Theo fez uma careta confusa.
– Que? Quem é você? – Theo tentou erguer-se e ficar nos cotovelos, mas a dor a fez desistir.
– Idi syuda! – Ela bradou para alguém fora dali.
– Você fala minha língua? Onde eu estou? – Theo perguntou com pânico na voz.
– Sim, eu falo sua língua. Meu nome é Ekaterina.
Rapidamente Harry e Dimitri apareceram no quarto, trazendo um alívio para Theo ao ver seu amigo.
– Dimitri! – Disse com espanto.
Dimitri se aproximou da cama, ajoelhando ao seu lado.
– Eu sabia que você não ia morrer. – Dimitri disse com um sorriso aberto, a encarando.
– Estou na sua casa, Dima?
– Está, gostou do meu quarto? Eu que decorei.
– Moça, quem fez isso com você? – Ekaterina perguntou.
Theo a encarou por alguns segundos, alguma fagulha acendeu-se em seu cérebro e uma enxurrada de lembranças e sensações ruins inundaram sua memória, lhe trazendo sensações dolorosas.
– Eu não sei. – Disse num sopro sofrido, de olhos fechados.
– Você estava sequestrada, eu vi na TV. – Harry comentou.
– Estava, não sei quem me raptou.
– Como fugiu?
Ela não contaria a verdade, daria o menor número de informações possível.
– Não me lembro direito, eu entrei em briga corporal com o vigilante.
– Eles devem estar a sua procura, dizem que isso é coisa de um pessoal do governo da Nova Capital. – Harry disse.
– Eu não sei… Não sei quem fez isso. Desculpe abusar da bondade de vocês, mas eu preciso muito de algum analgésico, algo forte de preferência, estou com umas dores terríveis.
– É, eu imaginei que sim, preparei isso para você. – Harry abriu a gaveta do criado mudo e tirou uma seringa cheia.
Destampou e aplicou em seu braço, sob o olhar atento de Theo.
– Você é o irmão do Dimitri?
– Sou, e essa é minha esposa.
– Theo, ele que cuidou de você, ele fez tudo isso aí. – Dimitri disse apontando para o rosto dela. – Foi Harry que te salvou, você estava morrendo congelada, e com um furo nas costas, mas o furo ele já tampou também.
– Eu não estava consciente, mas agradeço imensamente por tudo, e por terem me ajudado. Eu peço desculpas por ter procurado a casa de vocês, mas eu não tinha forças para voltar para minha casa, o cativeiro era aqui perto.
– Aqui no porto? – Ekaterina perguntou.
– Algum galpão de pesca, mas não me recordo direito, estava me desfalecendo quando saí de lá.
– Serei honesto com você. – Harry ia dizendo. – Eu não levei você ao hospital porque tive receio de ser incriminado de algo, mas fui enfermeiro por 17 anos, então sabia o que fazer para impedir que você morresse.
– E eu agradeço muito.
– Eu temo por mim e por minha família, não sabemos com que tipo de pessoas estamos lidando, por isso acho arriscado você continuar por aqui.
– Não quero trazer nenhum tipo de problema para vocês, Harry. – Theo disse com calma. – Eu quero ir para minha casa, acho que tenho condições de sair daqui e pegar algum transporte até meu bairro, vocês já me ajudaram bastante.
– Não, ele vai levar você. – Ekaterina falou, apontando para Harry.
– Moça, você tem alguém esperando em casa? Ou mora sozinha? – Harry perguntou.
– Tenho sim, um amigo e uma amiga.
– Peça a eles para te levarem ao hospital, você precisa de cuidados médicos mais avançados, que não pude te dar. Precisa que alguém faça algumas suturas, faça exames, essas coisas. Mas você precisa ir ainda hoje até um hospital, entendeu? Eu não consegui identificar o que perfurou suas costas, mas não me pareceu uma lâmina, pode ter sido algo sujo, enferrujado, sei lá.
– Talvez tenha sido algo assim.
– Você, vai, não vai? – Dimitri indagou. – Você tem que ir.
– Sim, prometo. E esse remédio aliviou um bocado, Harry. Obrigada novamente.
– Se possível, não nos mencione para a polícia quando te interrogarem. – Harry pediu. – A corda sempre arrebenta do lado mais fraco.
– Eu não irei mencionar vocês em momento algum, dou minha palavra. – Theo terminou de falar e tentou levantar da cama.
– Não. – Harry a segurou pelo ombro, com cuidado, a deitando novamente na cama. – Agora não, descanse mais um pouco. Está com fome?
– Muita.
– Nós vamos trazer algo para você comer. – Harry disse e saiu do quarto com Ekaterina.
– Senta aqui perto, Dima. – Theo falou para Dimitri, apontando uma cadeira no canto do quarto.
– Você vai poder voltar a fazer cafés?
– Vou, mas não por agora, preciso me recuperar.
– Eu não olhei muito para você, eu juro.
– Do que você está falando? – Theo falava com lentidão, a voz moderada.
– Quando você estava nua dentro da banheira.
– Eu fiquei nua dentro de uma banheira?
– Sim, para sua temperatura subir, antes estava com 27. Harry disse para não olhar, e eu não olhei quase nada, mas suas tatuagens são bonitas.
– 27? Nossa…
– Eu segurei sua cabeça o tempo todo. – Dimitri disse com orgulho de si.
– Obrigada, querido.
– Tem um monte de gente procurando você no lago, eu vi nas notícias. – Dimitri disse ajeitando um dos curativos no rosto dela.
– Que lago?
– Não sei, acham que seu corpo está lá. Mas seu corpo está aqui.
Theo o encarou com um semblante preocupado, se dando conta das coisas que ainda não haviam vindo à tona em sua memória.
– Meus amigos devem achar que estou morta. E Sam…
– Daqui a pouco você vai embora e conta que está viva. Eles vão achar que é assombração. – Riu.
Minutos depois, Harry entrou no quarto com uma tigela de sopa e um pão.
– É dessas sopas prontas, mas acho que vai matar um pouco da sua fome. – Lhe entregou se desculpando.
Theo ergueu-se devagar, entre gemidos de dor, sentando recostada na cabeceira.
– Parece ótima, obrigada.
Não demorou muito para começar a comer avidamente a sopa, o cheiro bom e aquele vapor que subia em seu rosto eram como uma mão lhe acariciando, bem-vindo depois dos momentos críticos dos últimos dois dias.
– O pão é de ontem, mas não está duro. – Dimitri disse.
– Sim, ele está bom. – Disse de boca cheia, o pão já pela metade. – Essa roupa que estou usando, é de sua cunhada? – Theo trajava uma calça de moletom preta e uma camiseta azul clara.
– É sim, a sua estava muito suja. Mas depois que estiver lavada vou te levar no café.
– Não se incomode, eu buscarei na loja de vocês, combinado?
– Já sei! Vou fazer um café para você, para retribuir todos os cafés que você me deu.
– Não, não precisa, Dima. Eu preciso ir embora, meus amigos devem estar preocupados, eu já tenho condições de andar.
– Tem certeza? – Harry perguntou.
Theo pensou por alguns segundos.
– Eu perdi minhas muletas…
– Você usa muletas?
– Uso, mas devem ter ficado no local onde me raptaram. Se me emprestarem um ombro acho que consigo andar.
– Eu empresto os dois. – Dimitri disse. – Mas você devolve depois, né? – Falou se divertindo.
Por volta das 13h, Theo chegou ao prédio onde morava, no carro com Harry e Dimitri. Sem descer, percebeu três jornalistas de plantão na portaria, não queria passar por ali e chamar a atenção da imprensa, ainda precisava bolar um plano para explicar o ocorrido falsamente, isentando seus homicídios. Queria conversar com Virginia e Stefan e chegar numa versão que fosse crível e sem ônus para ela.
Supervivente: Adj.: Que sobrevive, sobrevivente.