Capítulo 4 – Peripécia

Capítulo 4 – Peripécia

 

2 de janeiro de 2121

Manhã.

A luz do sol entrava pelas janelas destruídas daquele centro comercial abandonado, incomodando o sono de Sam, que acabou acordando alguns minutos antes do seu comunicador despertar.

Dormia de lado no colchão, virada para fora. Tentou se virar, mas sentiu algo atrás de si, Theo dormia encolhida e aninhada em suas costas.

– Você pode chegar para lá?

– Ãhn? – Theo acordou confusa.

– Chegue para lá, você está ocupando todo o colchão.

– Desculpe. – Theo correu para a borda oposta. – É que você é quente, e eu estava morrendo de frio.

– Você está usando dois casacos. – Sam sentou-se.

– Mas aqui é frio. Posso continuar usando este outro casaco?

– Pode, tire.

– Estou confusa.

– Tire e me entregue.

– Eu posso ou não posso?

– Garota, tire logo esse casaco e me entregue.

– Eu tenho nome. – Theo resmungou e tirou o casaco, lhe entregando.

Sam levou o casaco até o carro, tomou uma lâmina e cortou dois emblemas do tecido verde. Por fim entregou-o novamente à Theo.

– Pronto, agora pode usar.

– O que você fez?

– Removi as insígnias do exército europeu, para não chamar a atenção.

Theo corria seus dedos pelo tecido, pelo local onde haviam os emblemas.

– Temos o mesmo tipo sanguíneo. – Theo comentou ao passar os dedos por cima do bordado com a tipagem de Sam.

– Provavelmente as coincidências param por aí. Eu vou recolher as coisas para pegarmos a estrada para Seattle, torça para que esses caras consigam nossa documentação, senão estaremos presas na Zona Morta.

Theo levantou com preguiça do colchão, tomou suas roupas que havia deixado atrás do travesseiro.

– Sam, posso me trocar aqui?

– Pode sim. – Sam guardava o chuveiro portátil no fundo do carro e congelou por alguns instantes, observando Theo trocando de roupa de pé em cima do colchão.

Theo recolheu as roupas de cama e travesseiros, seguindo na direção errada do carro, Sam a chamou, corrigindo sua rota e tomando tudo de suas mãos, guardando.

– Ainda está com frio? – Sam perguntou.

– Um pouco.

– Me deixe abotoar seu casaco. – Sam a trouxe para perto, pela gola.

– Obrigada. E obrigada por me levar com você, por não ter me largado em Alberta, eu terei uma dívida eterna com você.

– Dívida eterna? – Sam sorriu.

– Você salvou minha vida, e agora quero salvar a sua.

– E você é um tanto pretensiosa, mocinha.

– Confie no meu potencial. – Foi a vez de Theo sorrir.

Sam havia acordado mau humorada, mas alguns minutos ao lado de sua nova companhia, e um sorriso tímido dela, amoleceram seu coração e abrandaram seu humor.

– Algo me diz que faremos uma boa parceria. – Sam refletiu.

– Acho que sim, eu fui com a sua cara.

– Que bom, porque pretendo levar você para bem longe.

– Para onde?

– O mais longe possível do lugar de onde você fugiu.

– Eu estou livre… – Theo se dava conta, com um sorriso bobo. – Eu consegui, eu estou longe daquele inferno…

– Se vierem atrás de você, não deixarei que te levem, ok?

– Oficial, se importa se eu abraçar você?

Sam sorriu, e a abraçou demoradamente, mas sem jeito.

***

Tarde.

O prédio executivo no centro de San Paolo era refinado, e com salas espaçosas e bem decoradas. Michelle havia voltado ao trabalho no segundo dia do ano, detestava deixar suas pendências para depois, por isso encurtou o recesso de fim de ano.

– Boa tarde, Fibi. Cheguei mais cedo que você hoje. – Michelle brincou, estava em sua grande escrivaninha branca no final da sala.

– Se eu não adorasse trabalhar com você estaria te odiando agora, por me chamar de volta ao trabalho em pleno réveillon.

– O réveillon foi anteontem, deixe de reclamações, temos muito trabalho pela frente e ainda nem tomei meu café. Trouxe as pendências da semana?

– Sim, tudo aqui. – A assessora pousou um fino tablet flexível na mesa, a sua frente.

– Vamos organizar nossa agenda, então?

– Não prefere o café primeiro? – Fibi bocejou após falar.

– O dever nos chama, o café pode esperar. – Michelle ajeitou seu bem alinhado tailleur negro, que contrastava com o cabelo loiro que caía pelos ombros.

– Desconheço pessoa mais viciada em trabalho do que você.

– Ok, começaremos com as viagens, temos quantas?

– Duas, quarta-feira para Winnipeg e sexta para Quebec. – Fibi respondeu após consultar o comunicador em sua mão. Era uma jovem de aproximadamente 25 anos, uma ágil assessora.

– Zona Morta essa semana? Perfeito. – Michelle abriu um grande sorriso.

– Quatro dias ao todo.

– Bom, você já sabe o que fazer, não é?

– Ligar para o Circus para reservar uma noite. Ás vezes acho que você deveria pedir o divórcio e casar com aquela menina.

– A coloridinha não casaria comigo, mas não é má ideia. – Michelle espojou-se na cadeira.

– Por que você não tira aquela menina de lá? Traga para morar em San Paolo, arranje um apartamento aqui no Centro para ela.

– Fibi, Fibi… Queria que as coisas fossem simples assim.

– Você pode fazer mais do que isso.

Fibi plantou a dúvida e esperança em Michelle. Após a conversa, ficou sozinha com seus pensamentos e um café, andando pensativa pela ampla sala. Aproximou-se de uma das janelas, pousou a testa no vidro, observando o movimento na rua abaixo.

– Será que ela aceitaria? – Murmurou sozinha antes de tomar um gole de café.

Quarenta minutos depois, a assessora voltou à sala de Michelle.

– Eu liguei para o Circus. – Fibi disse, de pé em frente da mesa.

– E?

– Disseram que ela está indisponível.

– Indisponível? Mas eles sabem que tenho prioridade nas reservas dela, você disse isso a eles?

– Eu disse, falei que você era vip, e que poderia ser na noite seguinte. Mas informaram que ela está indisponível por tempo indeterminado.

– Que palhaçada é essa? Nunca deixaram de fazer uma reserva minha. Explicaram o motivo?

– Não, não se prolongaram no assunto. Quer que eu volte a ligar?

– Não, eu ligarei. Obrigada, Fibi.

Esperou a funcionária sair, e ligou diretamente no ID de Elias.

– Elias, que história é essa de indisponível por tempo indeterminado? – Michelle foi logo vociferando.

– Minha cara Michelle! Como tem passado?

– O que aconteceu com Theo?

– Tivemos um probleminha com ela, está fora do catálogo.

– Eu não quero saber de seus problemas internos, quero a noite de quarta-feira.

– Ela não poderá atender você, mas temos outras tão boas ou até melhores que Theo, chegou uma garota semana passada, ela também tem algumas tatuagens, produto de primeira linha, garanto a você.

Michelle andava pela sala, com passos irritados.

– Você sabe que não aceito outra.

– Então não terei como atender você, Theo está morta, não posso fazer milagres.

Michelle estancou abruptamente seu passo, seu rosto ficou lívido com a notícia.

– Theo morreu?

– Acidentes, sabe como é.

– Que tipo de acidente?

– Você a conhecia, ela vivia tentando fugir. Numa tentativa de fuga acabou despencando do telhado e morreu. Mas acho que você deveria repensar a nova garota tatuada que eu tenho, te dou a primeira noite inteiramente de graça, faça um test drive.

– Seu… Seu… Você matou Theo. – Michelle balbuciou com a voz embargada.

– Eu não, os clientes causam isso. – Elias riu.

Ela desligou o comunicador e continuou estática no meio da sala, com as primeiras lágrimas surgindo.

– Michelle, você tem uma reunião em… O que aconteceu? – Fibi entrou na sala e interrompeu o que ia dizendo ao ver seu estado.

– Theo morreu.

– Meu Deus, como?

– Tentando fugir.

– Que droga… – Fibi balançou a cabeça com pesar.

– Ela não poderia ter morrido, eu havia decidido trazê-la para cá.

– Eu sinto muito, Michelle, eu realmente sinto…

Michelle enxugou o rosto, tentando se recompor.

– Cancele meus compromissos hoje, eu vou para casa.

Fibi aproximou-se e a abraçou de forma terna, Michelle voltou a chorar.

***

Noite.

– Ora, ora, que ilustre visita, meu irmão! – Elias abriu os braços ao ver Benjamin entrando em seu escritório, que tinha cheiro de perfume barato.

– Deixe de gracinhas, você tem muito o que explicar. – Bem respondeu de pé em frente à grande mesa ornamentada com dados.

– Sente-se, vou pegar um uísque para nós, faz tanto tempo que você não me visita aqui. – Elias foi até um pequeno bar ao lado, trazendo dois copos com a bebida e gelo, entregando um ao irmão.

– Espero que você tenha uma boa explicação para um cadáver estar se movimentando desde anteontem. – Ele vociferou, após sentar-se na cadeira em frente.

– Que cadáver?

– Elias, acho bom você parar de se fazer de desentendido. Eu tinha colocado um rastreador em Theo, eu mandei você dar um jeito nela e acreditei que estava feito. Mas desde a noite de réveillon que meu ponto rastreado tem se movimentado pela Zona Morta, depois de quase dois anos imóvel aqui nessa cidade.

– Você colocou um rastreador em Theo? – Elias o fitou com uma sobrancelha baixada, seu sorriso cínico havia desaparecido.

– No cordão que ela carregava no pescoço. E não venha me dizer que resolveu vender a corrente depois de dois anos.

– Eu realmente não faço ideia do que você está falando, eu fiz o que você pediu, dei um jeito nela.

Benjamin inclinou-se agressivamente para frente, colocando as mãos espalmadas sobre o tampo da mesa.

– Theo está viva?

– Isso faria diferença para você? – Elias zombou.

– É claro que sim! Você é um incompetente, por isso nosso pai nunca te reconheceu como filho!

– Abaixe esse tom, maninho. Quem fez a merda foi você, mandando matar a própria filha. Eu sou um comerciante, estou tentando me dar bem na vida, já que não tive os privilégios que você teve.

– Onde ela está?

– Não faço ideia.

– O que você fez com ela? – Bem se exaltava.

– Dei um jeito. Mas do meu jeito. – Elias sorriu maliciosamente.

– Ela estava aqui, no Circus?

– Sim, e me rendeu uma boa grana, sua menina era bastante requisitada.

Benjamin levantou-se num rompante e partiu para cima de Elias, o derrubando de sua cadeira. No chão, Ben o sacudia segurando pela gola de sua camisa.

– Você a colocou para trabalhar nessa espelunca imunda? Minha filha?

– Hey! Me solte!

Benjamin lhe deu um murro, cortando o lábio do seu irmão. Elias conseguiu jogá-lo para o lado, levantando-se rapidamente.

– Você deveria cuidar melhor da sua família! – Elias vociferou, enxugando o sangue na boca.

Benjamin levantou-se ofegante, era mais corpulento e pesado que seu irmão.

– A traga aqui.

– Eu não faço ideia de onde ela se meteu. E se você aproximar suas mãos de mim novamente, eu não respondo por mim.

– Para onde ela foi?

– Ela fugiu, matou um cliente, arrancou o braço do meu segurança, e sumiu na escuridão da noite. Um outro homem meu apareceu morto num beco no dia seguinte, ela deve ter encontrado ajuda no caminho.

– Eu quero que você a encontre, eu te dei uma merda de tarefa simples, e nem isso você conseguiu cumprir. – Bem bebeu todo o uísque do seu copo de uma vez só.

– Por que esse súbito interesse na filhinha?

– Eu errei, eu quero levá-la para casa.

– Vai matá-la com as próprias mãos? A deixe aqui comigo, ela é bem mais útil viva. Além do que ela me fazia companhia de vez em quando, eu fodia sua garotinha nesse sofá atrás de você.

– Seu desgraçado… – Benjamin pulou novamente para cima de Elias, desta vez um segurança entrou, o prendendo pelos braços.

– Da próxima vez não mande sua filha para um bordel. – Elias se recompunha, ajeitando os botões da camisa.

– Seu bastardo! Você vai pagar por isso! – Benjamin se contorcia ainda preso pelo segurança.

– Você está muito nervosinho, vou arranjar uma puta para você, nem vou cobrar, já que você me forneceu matéria prima de qualidade.

– Seu fracassado de merda!

– Rooney, tire ele daqui.

Uma hora depois, Benjamin estava já em seu jato supersônico particular, voltando para o Brasil.

– Alô? Walter?

– Como vai, chefe?

– Tenho um serviço para você. Fale com meu pessoal da segurança e peça que lhe repassem o rastreamento de um ponto de interesse meu. Aguarde este ponto parar de se movimentar por algum tempo, e vá até o local onde estiver.

– Quem é o ponto?

– Minha filha, Theo.

– Ela não morreu num acidente?

– Não, pelo visto está viva e andando pela Zona Morta. A encontre e leve para minha casa. Eu quero ela viva, não esqueça disso.

– Deixe comigo. Ela não sabe quem sou, inventarei algum nome e a levarei para casa de forma amigável.

Benjamin pousou no Rio, ao anoitecer. Do aeroporto seguiu para um apart hotel em Copacabana, abriu a porta com sua própria chave magnética, sendo recebido com um sorriso satisfeito de uma bela mulher de cabelos loiros.

– Como foi a conversa com seu irmão?

– Confirmei o que já suspeitávamos, Theo está viva, coloquei Walter para ir atrás dela.

– Walter é seu melhor homem, ele a trará de volta em breve.

– Eu sei. – Ben largou seu paletó numa cadeira, na sala.

– Não via a hora de ficar sozinha com você aqui. – Ela disse maliciosamente, aproximando-se devagar.

– A noite é toda nossa. – Ben a beijou, a abraçando demoradamente em seguida.

***

Peripécia: s.f.: momento de uma narrativa, peça teatral, filme etc. que altera o curso dos acontecimentos, geralmente de maneira inesperada, e modifica a situação e o modo de agir dos personagens.

4 comentários Adicione o seu
  1. theo estava cercada por uma corja de criminosos e essa Michelle não gostava tanto dela assim se não já teria tirado a theo de lá e espero que a Leticia esteja agora do lado sam e a alerte sobre o mike que esta se aproximando demais dela seria engraçado se a Lindsay se apaixona-se pela Leticia acho que ela iria entender mais a sam mais ela já e casada e tem 3 filhos acho que não seria possivel

  2. Afffffffffff………………..Michele arrependida……………..Pai da Theo arrependido……………..Elias um fdp………….Personagens reaparecendo…. Um outro olhar sobre as mesmas situações! Gosto disso, Cris !!!!! Vamos em frente!!!!! U hhuuuuuuu, muita aventura nos espera !!!!!!!!!!! Obrigada, Cris ! Deus abençõe seu talento !!!!! 😉

    1. Engraçado esse povo todo arrependido depois que o leite tá derramado, tarde demais.
      Ben já bateu as botas, Michelle vai reaparecer em breve. Elias tb vai reaparecer em breve, para desespero de Theo.
      Sim, vem mais momentos tensos pela frente, alguns beeeeeeem tensos.
      Eu que agradeço, mocinha 😉

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