Capítulo 32 – Pistantrofobia

Capítulo 32 – Pistantrofobia

 

– Do que você está falando, Stef? – Theo perguntou, estava sentada em cima da mesa de Claire, enquanto Sam e Claire conversavam na mesa de reuniões ao lado.

– O pessoal de TI me repassou que vários logins foram feitos nessa coordenada, nessa sala.

– Stefan, você sabe que isso não é tão preciso assim, pode ter sido você mesmo na sala ao lado. – Claire rebateu.

– Ou até mesmo aqui, durante alguma reunião em que você tenha participado. – Sam completou.

– Acho pouco provável. E então, ninguém vai assumir? Terei que contratar uma empresa terceirizada para investigar?

– Que besteira, nós três temos nossas IDs para acessar o sistema, e com o mesmo nível de acesso que você, ninguém teria motivos para usar o seu, é tudo igual.

– Eu também não sei com qual objetivo, mas irei averiguar isso, podem apostar. – Stefan ameaçou, e saiu da sala.

– Ele é meio paranoico, não liguem. – Theo disse.

Sam e Claire ainda assimilavam a visita do colega conselheiro, fitando um ponto qualquer em silêncio.

– Foi alguma de vocês? – Theo perguntou.

– Eu não.

– Muito menos eu.

– Stef só ladra, mas não morde, relaxem meninas.

– Você quer continuar a verificação dos itens amanhã? – Sam convidou Claire.

– Pode ser, não estamos nem na metade, amanhã a gente finaliza.

Claire guardou os papeis eletrônicos numa pasta, Sam foi até a mesa se pôs entre as pernas de Theo.

– Quer ir para casa? – Sam convidou, lhe roubando um beijo.

– Não, sabe onde quero ir?

– Não faço ideia.

– Numa caverna sombria e sinistra que era habitada por almas atormentadas.

– Que?

– Quero ir na sala do meu pai, matar a saudade, tem mais de dois anos que não piso lá.

– A sala está fechada, só usamos às vezes em reuniões maiores.

– Eu sei, me leva lá?

Theo desceu da mesa e ajeitou-se nas suas muletas brancas. Caminharam até o final do corredor, Sam aproximou seu rosto do identificador biométrico e a porta se abriu.

– Prontinho, estamos na sala da presidência.

A herdeira deu alguns passos pela sala, encontrou a mesa onde seu pai trabalhava, correndo os dedos pela lateral, pensativa.

– Ali ainda tem um sofá horroroso marrom? – Theo apontou para o lado.

– Tem sim.

– E ali tem um campinho de mini golfe?

– Tem.

Theo abriu um sorriso maquiavélico, foi tateando até chegar na outra parede, tateou até achar o local onde os tacos eram guardados, tomando um deles. Recostou as muletas no chão.

– O que você vai fazer?

Theo não respondeu, apenas simulava tacadas no ar.

– Cuidado para não quebrar nada. Ou cair. – Sam alertou.

Tateou novamente a parede, encontrando um dispenser de bolinhas, colocou duas no bolso e pousou a outra no chão, na marca de onde se davam as tacadas iniciais.

Concentrou-se segurando o taco com ambas as mãos, ameaçou a tacada algumas vezes, como se mirando no escuro. Fechou os olhos e fez a tacada, a pequena bola passou a um palmo do primeiro buraco.

– Passou perto. – Sam se aproximou, a assistindo.

Theo colocou calmamente a segunda bola na marca, e seguiu o mesmo ritual, batendo de olhos fechados.

– Uuuuh. Quase. – Sam disse.

Na terceira bola, levou alguns segundos a mais na concentração, e finalmente bateu.

– Parabéns, ganhou o primeiro buraco. – Sam disse, rindo.

Theo apenas abriu um sorriso convencido.

– Você brincava nisso? – Sam perguntou.

– Desde que voltei ao Brasil, quando tinha dois anos. – Theo respondeu pegando mais bolinhas do dispenser.

– Essa sala é uma coisa quase faraônica, e tem uma vista ótima. – Sam comentou.

– E você deveria ocupá-la. – Theo disse após colocar a bola na marca.

– Eu? Trabalhar aqui?

– Sim, a sala está sem uso, já está na hora de você sair da barra da saia da Claire e ter sua própria sala.

– Mas eu… Mas eu acho que aprendo muito mais trabalhando com ela, eu ainda estou um tanto perdida nessa empresa.

– Sam, você frequenta a Archer há seis meses, não aprendeu nada? – Theo disse de forma séria.

– Aprendi, mas sozinha eu vou ficar igual uma barata tonta, não serei útil.

Theo respirou fundo, fechou os olhos e deu a tacada, certeira novamente.

– Você que sabe. – Arrematou. – Eu sou boa nisso, não acha?

– Eu não acertaria nem enxergando.

– Eu gosto de golfe, mas prefiro basquete.

– Dia desses eu assisti um vídeo antigo de um jogo de basquete, achei divertido.

– Ah é? Algum campeonato?

– Sim, liga das universidades de San Paolo.

Theo apertou os olhos.

– Que times estavam jogando? – Theo perguntou, com o taco parado no chão.

– Você estava jogando, Theo.

– Sério? Você assistiu um jogo do meu time? – Theo abriu um sorriso.

– Sim, eu estava com insônia. – Riu.

– E o que achou do meu enorme talento?

– Você ficou mais no banco do que em quadra, e foi expulsa por excesso de faltas, mas até que acertou algumas cestas.

– Eu sou aquele tipo de jogadora que entra para definir, não perco tempo.

– Isso eu já percebi.

Theo deu mais uma tacada, e voltou a falar.

– Sam, eu estive pensando, acho que está na hora de você devolver meu nome.

Sam fez um semblante confuso, estava sentada no sofá marrom.

– Acho que não entendi.

– Já está na hora de anularmos a procuração, não acha? Eu já posso responder por mim.

– Por que você está propondo isso agora? – Sam perguntou temerária que Theo tivesse descoberto algo das especulações secretas que andava fazendo.

– Eu já tinha pensado nisso umas semanas atrás, mas esqueci. Lembrei agora.

– E você quer isso por algum motivo específico? – Sam perguntou cheia de dedos.

– É perigoso ser Theodora Archer, quero tirar isso das suas costas.

– Ãhn… Ok.

– Nada vai mudar para você nas suas funções aqui dentro, é um detalhe burocrático apenas, mas você ficará mais segura. – Theo largou o taco e tomou suas muletas de volta, indo na direção do sofá.

– Eu vou conversar com os advogados nos próximos dias, me informar como proceder. Você tem pressa?

– Não, não tenho. – Sentou-se em seu colo, de frente para Sam.

– Não sei quem cuidou disso naquela ocasião em que você estava em coma, mas vou verificar.

– Stef.

– Stefan? – Sam ergueu apenas uma sobrancelha. – Não foram os advogados?

– Stef é advogado, e é do conselho também. – Theo entrelaçou o pescoço dela com os braços.

– Eu não sabia.

– Ele não exerce mais a advocacia, é só um conselheiro chato agora, mas ainda trabalha em conjunto com os advogados de vez em quando.

– Stefan e Sandro são difíceis de lidar, e parecem estar sempre sussurrando nas sombras, confabulando. – Sam disse.

– Cisma sua, eles são apenas mal-humorados mesmo. E eu admito que torrei muito a paciência deles quando era mais jovem, quebrava tudo com o taco de golfe ou a bola de basquete.

– Espero que você tenha razão, mas não confio muito neles.

– Confia em Claire?

– Sim, nela eu confio.

– Ela já tentou algo com você?

– Algo?

– Não se faça de desentendida.

– Não, Claire nunca tentou nada comigo, ela me respeita.

– Nunca te deu uma cantada?

– Ãhn, não sei, talvez, eu não sou boa em detectar essas coisas.

– Que ingênua a minha oficial. – Theo riu, e saiu do sofá.

– Não sou ingênua, só sou inexperiente.

– Não estou brigando com você, só estou perguntando. – Theo seguiu com as muletas até a mesa que era utilizada por seu pai e sentou-se sobre ela.

– Às vezes não sei se ela está sendo simpática ou se está dando em cima de mim. – Sam confessou, ainda sentada no sofá

– Ela dá em cima de você, isso é fato. E na verdade não estou nem aí.

– Mas se você confia em mim não tem com o que se preocupar.

– Quem disse que confio em você? – Theo riu.

– Não confia?

– Não totalmente, e não quero que você confie totalmente em mim também.

– Por que? – Sam perguntava com espanto.

– Por que as pessoas erram, agem por impulso, tomam decisões estúpidas, mudam de ideia. É melhor não ter essa carga de expectativa em cima das pessoas.

Sam ficou um instante pensativa.

– Você pensa assim porque muitas pessoas traíram sua confiança, não é?

As palavras de Sam desarmaram a atitude cheia de si de Theo.

– Não…

– Inclusive eu.

– As pessoas erram, Sam.

– Sabe qual o preço de não confiar?

– Pistantrofobia.

– Que?

– É o medo de confiar por causa de experiências ruins do passado.

– Além de pistan.. pistranfoto…além disso que você disse, você acaba atraindo o pessimismo. – Sam dizia com propriedade. – Eu sei que quando estou perto de você, e estou quieta, ou estranha, você já imagina que vou contar algo decepcionante, que vou confessar alguma burrada, ou dar a notícia que fiquei com outra pessoa, que fiquei com Claire, algo do tipo.

– Por que está falando isso?

– Eu percebo, tem momentos que percebo que você espera o pior de mim.

– É assim que nos preparamos para o que der e vier. – Theo rebateu.

– Não acha melhor mantermos boas expectativas? Os sonhos são feitos disso.

– Um equilíbrio entre as duas coisas, quem sabe.

– Vejo uma evolução. – Sam respondeu com um sorriso.

– A gente nunca sabe de onde vem a pancada.

– Posso te perguntar algo pessoal?

– À vontade. – Theo balançava as pernas na frente da mesa.

– Você já traiu?

– Hum. – Franziu as sobrancelhas. – Sim.

– Evelyn?

– É, eu ficava com outras pessoas, mas ela também ficava. Na verdade acho que nunca fui monogâmica. – Theo riu.

– Nem com Letícia? – Sam perguntou surpresa.

– Eu ficava com outras meninas.

– Você traia Letícia?

– Acho que ela não se importava, ela me disse algumas vezes que se eu aprontasse ela não queria ficar sabendo. No fundo ela sabia que eu aprontava.

– E Janet, que te traiu e você quebrou a casa dela?

– Eu não traí Janet, eu era ingênua na época.

– Então você está me dizendo que não trair é ingenuidade?

– Achar que ninguém trai é ingenuidade, as pessoas não costumam se contentar com uma pessoa só por muito tempo.

Sam ouvia estarrecida.

– Você vai fazer isso comigo? – Sam perguntou com medo da resposta.

– Provavelmente não, com você não, com você é diferente.

– Por que?

– Eu sei o quanto isso te machucaria, eu não ia suportar te fazer mal.

Um estrondo leve foi ouvido na sala.

– Ops, esqueci que o tampo dessa mesa é uma tela… – Theo disse, rindo.

– Você quebrou a tela com a sua bunda?

– Quebrei.

– Machucou?

– Não. – Ficou um instante em silêncio. – Sam, você me trairia? De novo?

– Por que isso teria importância para você e todo esse seu espírito livre e poligâmico? – Sam gesticulou rodando a mão.

– Depois que comecei a namorar com você percebi que não sou tão poligâmica assim… – Theo riu. – Eu quero uma relação monogâmica com você.

– Consequência da idade?

– Consequência do amor mesmo.

***

Sete semanas depois.

– Como pode uma estudante de medicina detestar tanto hospitais? – Letícia perguntou a Theo, que estava se ajeitando em seu leito hospitalar, já com uma bata azul clara.

– Você também se sentiria desconfortável se tivesse passado dois meses presa numa cama dessas, e recebendo visitas agradáveis como de Mike e Tio Elias, eles nem trouxeram flores.

Sam entrou no quarto, sentando-se ao lado de Letícia no sofá duro.

– Confirmei lá, a cirurgia será as três da tarde mesmo. – Sam informou.

– Três? Achei que seria meio-dia. – Theo disse desolada.

– Não, é três mesmo.

– Mas meu jejum ainda não começou, não é? Eu posso pedir que você busque algo da lanchonete do hospital para mim? Agora nem são dez da manhã.

– O jejum já começou.

Theo suspirou com visível decepção.

– Você não tomou café em casa? – Letícia perguntou.

– Tomei, as oito, já estou com fome.

– O nome dessa fome é ansiedade, tente não pensar na cirurgia, escute algo na tela, escute música, se distraia. – Sam disse.

– Ok, tentarei ficar calma sabendo que vão mexer na minha cabeça de novo, e que talvez amanhã eu volte a enxergar, ou talvez não. Coisas corriqueiras, não é mesmo?

– Corriqueiras não, mas esperadas há muito tempo. Esperamos tantos meses até você estar razoavelmente recuperada para finalmente fazer essa cirurgia, é um risco calculado. – Letícia sintetizou.

– Eu gostaria de saber como o médico chegou ao número 30.

– Dos 30% de chances da cirurgia dar certo? Ele deve ter alguns parâmetros para calcular isso. – Sam disse.

– Tem água aqui? – Theo tateou a mesinha ao lado, derrubando um copo d’água.

– Tinha. Espera, eu enxugo isso. – Sam foi até o banheiro e trouxe papel toalha.

– Desculpe.

– Talvez esse seja seu último copo derrubado. – Letícia disse, com otimismo.

– Acho que Theo vai continuar derrubando copos mesmo se voltar a enxergar. – Sam disse rindo.

– Mas vou conseguir acertar tapas em você. – Theo deu um tapa no ar, passando próximo do ombro de Sam.

Sam tomou sua mão ainda no ar, trouxe para perto e beijou a palma.

– Falando sério agora, tente não ficar pensando nisso, será uma tentativa, se não funcionar vamos tentar de novo e de novo e de novo… – Sam disse.

– Tentarei. – Theo aproveitou a mão no rosto dela para trazê-la para perto, e dar um beijo. – Quem eu tenho que levar para a cama para conseguir um copo de água por aqui?

A cirurgia ocorreu pouco depois das três da tarde, Theo voltou semiacordada para seu quarto as 21:30h.

– Meu Deus, demorou uma eternidade. – Sam sussurrou, já sentada ao seu lado no leito, correndo a mão por sua testa e por seus cabelos.

Theo apenas concordou movendo lentamente a cabeça, estava dopada. Havia ataduras enroladas ao redor de sua cabeça, cobrindo os olhos.

– Você está bem?

– Sim… – Murmurou. – Sobrevivi.

– Sente dor?

– Náuseas…

– Quer que eu peça um remédio para seu enjoo?

– Antiemético…

– Esse é o nome?

– Sim.

– Vou pedir então.

– Não, agora não… Sono…

– Ok, durma um pouquinho. – Sam beijou sua testa e apagou a luz do quarto, deixando apenas uma mais fraca acesa.

– Espera, você desligou a luz? – Theo perguntou.

– Sim.

– Eu percebi. – Theo abriu um sorriso sonolento.

– Você percebeu a luz apagando? – Sam sorriu abertamente. – Isso é um ótimo sinal, isso é muito bom.

– É sim… É um bom sinal… – Acabou adormecendo, Sam continuou com seu sorriso fixo no rosto por algum tempo, a vendo dormir.

Duas horas depois Theo acordou confusa, tateando as barras laterais da cama.

– Não é a minha cama. – Disse com pânico na voz, Sam saltou do sofá para perto dela.

– Não, essa é a cama do hospital, você está no hospital.

– O que é isso no meu rosto? – Theo tateava as ataduras afoitamente.

– Não mexa, você acabou de passar por uma cirurgia. – Sam tomou delicadamente suas mãos.

– Por que você está segurando minhas mãos?

– Para que você não se machuque.

– Eu não vou machucar você.

– É para que ‘você’ não machuque a si mesma.

– Também não.

– Pronto, mãos soltas, mas não coloque no rosto, combinado?

Theo continuou com as mãos erguidas, como se esperando algo.

– Eu posso coçar o nariz? – Perguntou cheia de confusão.

– Pode sim. Está sentindo alguma coisa?

– Dor de cabeça.

– O médico disse que você vai sentir dor de cabeça, confusão, e tonturas nos próximos dias, mas vou checar se você pode tomar algo agora. – Apertou o botão na parede.

Uma enfermeira apareceu segundos depois, Sam conversou com ela, que aplicou mais algum analgésico e saiu.

– Isso vai melhorar um pouquinho. – Sam disse, sentando ao seu lado, mas Theo não respondeu, apagara de novo.

– É, dormir também ajuda a minimizar a dor. – Sam falou sozinha.

Quarenta minutos depois, Theo novamente acorda confusa.

– Hospital?

– Sim, e você parece um peixinho dourado, sabia? – Sam brincou.

– Peixe? Que peixe? É o jantar?

– Sabe onde está e o que aconteceu?

Theo levou a mão à lateral da cabeça, sentindo as ataduras.

– Lincoln Memorial, cirurgia de reconstrução dos nervos ópticos.

– Muito bom.

Theo mexeu a cabeça de um lado para outro, com sonolência.

– E a luz está acesa.

– Sim, a enfermeira acendeu. Pronto, agora apaguei.

Ficou algum tempo em silêncio, e voltou a falar.

– Se existisse um emprego que consistisse em informar se a luz está acesa ou apagada, eu poderia ter esse emprego, não acha? – Theo dizia devagar e grogue.

Sam riu, e sentou ao seu lado na cama.

– E você seria uma boa informadora de status luminoso na empresa.

– Você vai dormir aqui? – Theo acariciava a mão de Sam, em cima da cama.

– Vou sim.

– Onde?

– Tem um sofá nada convidativo aqui atrás.

– Dorme comigo.

– Aqui na cama?

– Sim, dorme aqui.

– Eu tenho receio de acabar batendo na sua cabeça acidentalmente.

– Sam, minha cabeça aguentou um tiro, não vai aguentar seu cotovelo?

– Tá bom, mas prometa que se estiver desconfortável você vai me expulsar.

– Jogar você para fora da cama poderia ser meu nome do meio. – Theo deslizou para o lado.

– Eu sei, os velhos hábitos que nunca se perdem… – Sam resmungou, tirou os tênis e deitou-se sob o cobertor.

– Você está longe, deite aqui. – Theo a chamou para seu peito, Sam seguiu a orientação, aconchegando-se cuidadosamente, ajeitando os pequenos tubos.

– Confortável? – Theo perguntou baixinho, afagando seu ombro com o polegar.

– Aqui sempre é confortável.

Ficaram alguns minutos em silêncio, apenas ouvindo suas respirações, batidas, e os bips da sala.

– Talvez essa seja a última noite sem ver você, talvez amanhã eu vá dormir conhecendo sua imagem real. – Theo refletiu.

– Seria maravilhoso… Mas isso tem me deixado em pânico.

– Por que?

– Eu morro de medo de você detestar o que enxergar.

– Eu já disse que isso seria impossível, não tem jeito do que eu sinto por você se esvair assim de uma hora para outra. Sem chance.

– Mas pode perder o encanto.

– Todas as coisas que eu sinto por você… Tudo… Foi tudo formado sem te enxergar. Existe a possibilidade de minha imagem criada ser bem diferente da imagem real, mas eu me adaptaria com a convivência, com o tempo.

– Engoliria a decepção… – Sam resmungou.

– Não, é só uma questão estética, mudança de percepção. Jamais a perda do encanto, ou do amor. – Theo beijou o alto de sua testa. – Eu me apaixonei por tudo que não enxergo.

– Não fuja com a enfermeira, ok? – Sam disse sorrindo, tentando espantar seu medo real.

– Amanhã à tarde fugirei daqui com você, de preferência enxergando o caminho.

– Uhum. – Bocejou.

Theo deslizava seus dedos pelo rosto de Sam, como se tentando obter mais um pouco da fisionomia dela.

– Eu percebi que você mal dormiu a noite passada. – Theo murmurou.

– Preocupada com a cirurgia. – Suspirou alto. – E com aquilo que já mencionei.

– Ok, eu vou contar uma coisa para você, e você promete que não vai contar para Letícia.

– Que você enchia a cabeça dela de chifres?

– Nunca mencione isso para ela. Mas não é isso, é outra coisa.

– O que?

– Ela me contou que você é linda.

Sam riu.

– Eu posso ter pago a ela para dizer isso.

Silêncio.

– Você pagou?

Sam riu mais.

– Você nunca saberá.

– Talvez amanhã. Agora feche os olhinhos e durma. – Theo passou a mão pelo rosto dela.

– Eu conheci você assim.

– Cega?

– Com essa bandana de ataduras ao redor dos olhos.

– É, é verdade. Deve ter sido estranho topar com uma pessoa assim correndo no escuro.

– Foi bem estranho. Engraçado que minutos antes eu tinha dado um último gole num caneco de chope barato em comemoração à virada do ano, e tinha feto uma pequena prece pedindo que Deus permitisse que eu chegasse viva até a virada do ano seguinte.

– Suas chances agora são bem maiores.

– Ele mandou você.

– Irônico, né? – Theo sorriu.

– Providencial.

***

Passavam alguns minutos das onze da manhã do dia seguinte, Doutor Franco prometera aparecer lá a tarde para remover as ataduras e curativos, efetuando um exame básico para verificar o resultado da delicada cirurgia. No sofá desconfortável Sam e Dani procuravam posições melhores, enquanto Letícia e Maritza estavam sentadas em cadeiras. Theo estava um tanto calada, caia em si do que poderia vir pela frente, a ansiedade aumentava com o passar das horas.

Sam também estava apreensiva, resolveu descer para almoçar mais cedo, no restaurante do hospital, incentivada por Theo.

– Ok, eu já volto, me liguem se o médico aparecer.

Optou por um lanche rápido, foi até a cafeteria e pegou um sanduíche, sentou-se numa mesa quadrada de quatro lugares, estava no meio de sua rápida refeição quando percebeu alguém sentando na cadeira a sua frente.

– Esqueceu que dia é hoje, sobrinha postiça? – Era Elias, com seu sorriso grande e cínico.

Sam parou seus movimentos, suas feições tencionaram de imediato, um ardor subiu pelo estômago ao encará-lo.

– Eu não consegui fazer o que você pediu, está além das minhas possibilidades. – Respondeu nervosamente.

– Você poderia ter se esforçado mais, você tem acesso ao mundo Archer por inteiro.

– Tenho acesso, mas não poderes, e se eu fizer uma coisa dessas me matariam no dia seguinte.

– Então é uma questão de escolha, por quais mãos você quer morrer. – Elias sorriu com sarcasmo.

– Me dê outra chance, por favor.

– Te dei dois meses, tenente.

– Por favor não me mate, não hoje. – Sam implorou, segurando sua vontade de chorar.

Elias a fitou ainda com o mesmo sorriso debochado, tomou o copo de água sobre a mesa e bebeu calmamente.

– Quer terminar a refeição? – Ele perguntou, gesticulando discretamente para dois brutamontes, que vieram em sua direção.

– Hoje não, por favor, hoje não, me dê mais alguns dias.

– Seu carro está no estacionamento do hospital?

– Está.

– Ótimo, vamos dar uma voltinha, meus amigos vão conosco, ok? Só para garantir que você se comportará na viagem.

– Para onde?

– Um lugar que você conhece.

 

Pistantrofobia: s.f.: medo de confiar nas pessoas, devido a experiências negativas do passado.

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4 comentários Adicione o seu
  1. Capítulo ótimo! E quando a gente pensa que elas vão finalmente se ‘conhecer’ vem o lixo do Elias para estragar tudo. Mas não entendo a lerdeza da Sam… Ela sabia das ameaças e mesmo assim está sem seguranças? Puxa vida, será que o Elias levará a Sam para o novo Circus? Caraca, ansiosa pelo próximo capítulo. ?

  2. ninguém aguenta mais esse Elias e não vejo a hora da Sam acabar com a raça dele….é tambem estou desconhecendo a Sam ta boazinha demais com esse traste…Cris, queremos de presente a cabeça de Elias…..kkkkk

    abraço!

  3. Sabe… eu não estou conseguindo entender como Elias está com toda essa liberdade de ir e vir, ele aparece do nada, nem parece que existe um esquema de segurança realmente organizado em torno da ameaça que ele representa.

    Tipo, dois meses e Sam nessa morosidade, ainda pedindo mais tempo… sei lá, ela tá sob efeito de Beta-E e não sabemos? =P

    Tirando isso, gostei dos diálogos desse capítulo, essas coisas de construção de imagem e o que realmente importa em uma relação, eu gosto dessas reflexões, acho que estou aprendendo a conhecer melhor as personagens, antes eu tinha uma ideia bem particular de como elas se comportariam. Mas ninguém melhor do que a criadora pra lançar luz sobre quais são as reações que elas podem apresentar diante de determinada situação.

    Ótimo capítulo como sempre Cris, aguardemos cenas dos próximos capítulos.

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