Capítulo 3 – Aurora

Capítulo 3 – Aurora

21 de fevereiro de 2121

– Tem certeza que não quer que eu fique com você? – Lindsay perguntou à Sam, do lado de fora do carro, em frente ao hospital.

– Tenho sim, estou me sentindo ótima, e eu quero ficar sozinha com ela.

– Tá bom, você é mais teimosa que nosso pai, vou pedir para o Lucian te buscar meio-dia.

– Não, eu passarei o dia aqui, me busquem no final da tarde.

– É seu primeiro dia aqui, pegue leve, fique algumas horas apenas.

– Lynn, final da tarde, ok? – Sam deu um beijo em seu rosto e seguiu mancando para a entrada do hospital.

– Bom dia, vim visitar uma paciente. – Sam apresentou-se na recepção.

– Qual o nome?

– Theodora Archer.

– Ah, o caso especial. – A atendente fez um sinal com a mão, chamando um forte homem de terno e gravata, e uma moça.

– Caso especial?

– A senhora pode nos acompanhar até aquela sala? – A moça apontou para uma porta logo atrás.

– Por que?

– É o protocolo para as visitas dela.

Sam concordou, entrando na pequena sala acompanhada dos dois. Teve sua íris escaneada e suas digitais confirmadas.

– Tudo ok, Samantha Cooper, correto? O segurança irá acompanhar você até a UTI. Claire deu a você autorização total de acesso, mas o Doutor Woler vetou que você durma aqui, então você precisará ir embora no máximo as 18 horas.

O segurança conduziu Sam até a porta do quarto treze, onde outro segurança permanecia de guarda, sentado ao lado. Sam fechou os olhos e respirou fundo, abrindo a porta.

Theo não estava muito diferente de quando a havia visto, quatro dias atrás. Continuava ligada à inúmeros aparelhos e fios, o respirador branco e azul deixando seus lábios entreabertos, e o mesmo semblante pacífico.

Sam parou ao lado do leito, a observando demoradamente, agora sem pressa. Cada dia ao seu lado, cada momento dividido, tudo que sentiu nas últimas semanas, Sam foi relembrando pouco a pouco, enquanto a fitava de forma carinhosa, porém pesarosa.

Sentiu-se cansada, ainda por conta da recente cirurgia, trouxe uma cadeira para perto dela. Sentou-se e olhou ao redor, se dando conta que provavelmente aquela UTI altamente equipada e com bipes constantes seria seu segundo lar por muito tempo.

Tomou sua mão direita, e agora era Sam que precisava de um pouco de certeza física, certeza que Theo ainda estava ali, e que tudo ficaria bem.

– Conseguimos… – Sam sorriu de lado. – Sobrevivemos, Theo.

Ela havia prometido a si mesma tentar se manter sempre firme, já havia chorado e lamentado o suficiente, queria agora estar forte ao lado de Theo, queria manter seus pensamentos otimistas, e fazer todo o possível para que ambas se recuperassem logo.

Mas poucos minutos depois Sam não conseguiu segurar uma sensação explosiva e triste dentro do seu peito, ao avistar sua mão esquerda, enfaixada. Levantou-se e foi até o outro lado da cama, pousou a mão em seu pulso, seu peito ardia de dor, mas não era por conta da cirurgia.

– Me desculpe… – Sam chorava, segurando sua mão ferida. – Eu nunca quis te machucar, me perdoe…

Uma culpa avassaladora surgiu, atropelando seu desejo de manter-se forte, e desencadeando uma enxurrada de sentimentos.

– Você pediu para que eu não chorasse muito… Eu vou tentar não ficar assim, tá bom? – Sam dizia entre soluços.

Pode ver parte da tatuagem do símbolo do infinito em seu pulso, lhe trazendo um sorriso bobo.

– Provavelmente eu não estaria viva agora, mas você não deveria ter feito isso. – Sam corria seus dedos delicadamente pela tatuagem. – Não foi justo, era você que deveria estar agora naquela mansão, aproveitando sua vida, jogando bolinhas de cereal para o cachorro que eu ainda não sei o nome. Saiba que vou te dar uma boa bronca quando você acordar, não era para ser assim.

Aproximou-se da cabeceira, acariciando seu rosto com as costas da mão e dedos.

– Eu te amo… Meu coração novo já está repleto de você. Não demore muito para acordar, ok? Estarei aqui sempre.. acompanhando você melhorando dia após dia, até poder levar você para casa.

Sam passou o restante do dia entre a cadeira ao seu lado e o sofá de tecido cinza, que não parecia muito confortável. Uma enfermeira lhe informou que o médico só chegaria no final da tarde, e Sam o aguardava com ansiedade.

Aproximava-se das seis da tarde, quando finalmente o neurocirurgião entrou na UTI, fazendo Sam levantar afoitamente do sofá.

– Que bom que consegui encontrar o senhor ainda hoje. – Sam desabafou, apertando sua mão.

– Samantha, correto? – O médico de cabelos desgrenhados e óculos redondos continuava a cumprimentando.

– Isso. – Sam soltou sua mão. – Como ela está?

Doutor Franco a encarou por alguns segundos, hesitante.

– Você já conversou com alguém sobre o estado dela?

– Não, as enfermeiras apenas dizem coisas vagas ou que não tem permissão para falar.

– Bom, me deixe dar um oi para a paciente, sente-se.

O médico fez um exame visual em Theo, depois conferiu alguns dados nos monitores ao redor, bem como em sua prancheta eletrônica. Sam não aguardou o final do exame.

– Ela vai acordar em breve, não vai? – Sam perguntou, esperançosa, com os cotovelos apoiados nas pernas.

O médico puxou a cadeira para perto de Sam, sentando de frente para ela.

– O quadro dela é estável.

Sam o interrompeu.

– Pelo amor de Deus, isso é tudo que tenho ouvido nos últimos dias, me fale algo mais concreto do que apenas estável.

– Ok. – Ele ajeitou os óculos. – Theo está piorando, ela continua com inchaço no cérebro e não tenho a menor dúvida que ela não sobreviveria a mais uma cirurgia.

Sam assustou-se com as notícias, o fitando em choque.

– E o que está sendo feito?

– Estamos monitorando, ela está recebendo medicação para reverter o quadro, mas depende quase que totalmente dela.

Sam lançou os olhos na direção do leito, ainda assimilando.

– Façam mais, ela não pode morrer, deve ter alternativas para a cirurgia.

– Ela é uma menina forte, vamos esperar uma reação.

Sam esfregou os olhos, aflita.

– Ela não está tendo melhora alguma? Achei que ela estava se recuperando em todos esses dias, ela já está há uma semana aqui!

– Samantha…

– Me chame de Sam, por gentileza.

– Ok, Sam. A atividade cerebral é quase nula, não há resposta à estímulo algum. Ontem seus rins começaram a falhar, hoje começaram os problemas com o fígado também. Ela está no processo de disfunção múltipla de órgãos, e não estamos conseguindo reverter.

– Meu Deus…

– Talvez ela esteja se despedindo.

– Não, não, isso não vai acontecer, ela não está se despedindo, ela tem muito o que fazer por aqui ainda.

– Ela pode nos surpreender e ter uma melhora, nesses casos tudo é possível, mantenha as esperanças, tudo que está ao alcance da medicina está sendo feito.

Sam levantou do sofá, se aproximando da cama.

– Theo está aqui, ela ainda está aqui, é só um momento crítico, ela vai sair dessa.

O médico emparelhou-se com Sam ao lado do leito.

– Ela continua lutando bravamente.

– Eu não esperava algo diferente.

– Eu preciso ir, amanhã dou mais uma passada por aqui.

Assim que o médico saiu, o segurança do lado de fora entrou no quarto, anunciando o final do horário permitido de Sam.

– Não, eu ficarei aqui.

– Senhora, tenho ordens para removê-la do quarto as seis, por favor me acompanhe.

– Eu não vou, ela está morrendo, eu preciso ficar aqui! – Sam se exaltava.

– Estou cumprindo ordens, por favor, estamos num local delicado, me acompanhe.

– Com quem preciso falar para conseguir autorização?

– A senhora pode tentar falar com Claire amanhã.

– Não, eu quero ficar hoje!

– O que está acontecendo aqui?

Uma mulher negra, com cabelos trançados, entrou no quarto interrompendo a discussão acalorada.

– Quem é você? – Sam indagou rispidamente.

– Eu que pergunto, quem é você que está causando essa celeuma no quarto de Theo?

– Quem autorizou sua entrada aqui?

– Você não respondeu minha pergunta, quem você pensa que é?

– Eu tenho autorização para estar aqui! – Sam bradou.

– Até as seis da tarde, seu tempo terminou, senhora. – O segurança entrou na conversa.

– Eu acho melhor você sair com o segurança.

– Não vou sair do lado de Theo! – Sam vociferou e sentiu uma dor no peito, a deixando tonta e levando uma mão ao local.

– Moça, você está bem? – A mulher perguntou.

– Estou, eu fiz uma cirurgia semana passada.

– Cirurgia?

– Um transplante de coração.

– E você está aqui causando confusão ao invés de estar em repouso por que?

– Eu estou bem. E você ainda não disse quem é.

– Letícia, sou amiga de Theo, e tenho autorização para estar aqui.

– Letícia?? – Sam a fitou com espanto.

– Sim, me conhece por acaso?

– Theo falava de você.

O semblante de Letícia se suavizou.

– Você é amiga de Theo? Qual seu nome?

– Samantha, Sam.

– Theo nunca mencionou seu nome.

– Eu a conheço há pouco tempo.

– Senhora? Por favor. – O segurança voltou a insistir.

– Sam, nada vai adiantar ficar aqui discutindo, vem tomar um café comigo, vamos achar uma solução para isso.

Sam olhou em dúvida para o segurança e para Letícia, e acabou aceitando, logo as duas estavam num café no próprio hospital.

– Eles estão apenas cumprindo as ordens, você não conseguiria convencê-lo a mudar de ideia. – Letícia disse, recebendo sua xícara de café.

– Mas eu quero passar a noite com Theo, o médico disse que ela está piorando.

– Eu sei, mas ela tem grandes chances de sair dessa, eu conheço bem essa garota, ela não é de desistir assim fácil.

– Não, não é. – Sam parecia mais calma, deu um gole em seu café.

– Então, como você a conheceu? Do basquete?

– Não, é uma longa história.

– Não tenho pressa.

– Letícia, você sabe o que aconteceu com ela nos últimos dois anos?

– Soube pelos noticiários que ela foi sequestrada, e que o próprio tio estava por trás disso, aquele maldito Tio Elias.

– Sim, ele a sequestrou. Eu a conheço há poucas semanas, estávamos viajando juntas.

– Para onde?

– Para cá.

– Você tem algo a ver com o sequestro?

– Não, não. Eu a encontrei na noite em que ela fugiu.

– E se tornaram amigas?

Sam moveu a cabeça sem jeito, hesitante.

– Um pouco mais que isso.

Leticia arregalou o os olhos, sem entender.

– Theo está namorando?

– Bom, se ela resolver acordar, talvez um dia consigamos oficializar. – Sam sorriu torto.

Sam recebia um olhar analítico de Leticia, que parecia ainda incrédula.

– Quantos anos você tem? Vinte? Você não faz o tipo dela.

– 23. Por que não?

– Theo gosta de mulheres com mais de trinta.

– Você tem mais de trinta?

– Tenho 35. Então você sabe que eu e Theo fomos namoradas?

– Sei sim, ela me contou. Por dois anos, não foi?

– Dois anos. Daí ela se tornou minha melhor amiga, é só Deus sabe o quanto senti falta dessa garota nesse tempo sem ela.

– É, eu imagino. Eu já estou sentindo sua falta, eu passei minhas últimas seis semanas com ela ao meu lado, dia e noite.

– Só tem uma coisa que ainda não fez sentido nisso tudo. – Leticia inclinou-se para frente.

– O que?

– Se Theo havia finalmente conseguido fugir do cativeiro, e estava até mesmo namorando, por que ela tentou se matar?

– Longa história… – Sam respondeu com desconforto.

– Pode começar a contar.

– Não hoje, ok?

– Tudo bem.

– Apenas saiba que ela não queria morrer, ela fez isso num momento de desespero.

Sam olhou seu comunicador e ignorou as mensagens da irmã.

– Letícia, eu preciso ficar aqui hoje, você pode me ajudar? – Sam pediu num tom clemente.

– Me dê um minuto. – Letícia sacou o comunicador e trocou algumas mensagens.

– Vá para casa descansar, Theo não vai embora hoje.

– Como você sabe?

– Falei com um amigo que trabalha aqui no hospital, ele me passou a ficha dela. Theo está ruinzinha, mas se mantém estável.

– O que diz na ficha?

– Coisas que você não entenderia.

– E você entende?

– Eu sou médica residente.

– Trabalha aqui?

– Não, trabalho no Cedars, acabei de vir de um plantão de 24 horas.

– Você acha que ela vai sobreviver?

– Vai sim, vou lá em cima agora encher ela de bronca. – Letícia ajeitou-se na cadeira metálica. – Vamos fazer o seguinte: você vai para casa agora, vai descansar e ter uma bela noite de sono. Eu vou ficar um pouco com nossa amiga dorminhoca, depois continuo te mantendo informada sobre qualquer alteração do quadro dela, estarei sempre em contato com esse meu amigo que trabalha aqui.

– Ela estará aqui amanhã, não estará?

– E você ainda duvida disso? – Leticia abriu um belo sorriso alvo.

– Eu sei que vou levá-la para casa em breve.

– Uma coisa de cada vez, Sam. Escute, eu sei que ela vai sair dessa, mas apenas para desencargo de consciência eu acho que você poderia tirar um minutinho amanhã para conversar com ela, caso ela resolva partir.

– Me despedir?

– Eu não diria despedir, mas acho que você deveria dizer tudo que gostaria.

Sam apenas balançou a cabeça tristemente, concordando.

– Precisa de carona? – Letícia se ofereceu.

– Não, tem um motorista me esperando aqui.

– Ok, então vá para casa, você não deve cometer excessos agora, precisa ficar bem para cuidar da sua garota.

– Te vejo amanhã?

– Sim, vou passar a tarde com vocês.

***

Sam chegou em casa e encontrou Mike na sala, a aguardava com impaciência.

– Por que demorou tanto? Você não atendeu nossas ligações.

– Onde está Lynn?

– No quarto, falando com as crianças. Sam, você não pode ser irresponsável dessa forma, e se você tivesse tido alguma complicação? Você precisa de repouso e cuidados.

– Eu estou bem, vou tomar um banho e dormir. – Sam já se dirigia para o andar superior, Mike a segurou pelo braço.

– Não faça mais isso, ok? Você nos deixou preocupados.

– Me solte. – Sam o encarou furiosa.

Subiu para seu quarto, tomou um banho sem pressa, e deparou-se com Mike sentado em sua cama.

– Mike, não gosto de você invadindo meu quarto dessa forma. – Sam ia falando enquanto procurava roupas no armário.

– Vim pedir desculpas pela forma como falei com você agora há pouco. – Mike respondeu com doçura, indo até Sam, que usava um roupão branco.

– Tudo bem, eu responderei as ligações e mensagens da próxima vez.

– Venha cá.

– O que? – Sam virou-se, e Mike a abraçou.

– Vai ficar tudo bem, essa turbulência vai passar. – Mike dizia de forma carinhosa, enquanto afagava sua nuca, Sam rendeu-se ao abraço.

– Theo tem piorado… – Sam murmurou.

– Meu amor, entregue nas mãos de Deus, não podemos fazer nada.

– Deus não pode permitir uma injustiça desse tamanho, ela lutou tanto… – Sam embargou a voz, e desprendeu-se do abraço.

– Ela vai melhorar, não perca a fé. – Mike enxugou as lágrimas em seu rosto.

– Obrigada por estar ao meu lado, você e Lindsay tem sido minhas rochas.

– Eu faço qualquer coisa por você.

Lindsay entrou no quarto e sorriu ao ver a cena do quase abraço daqueles que um dia formaram um sólido casal.

– Estou atrapalhando algo? – Ela perguntou sorridente.

– Não, só estava cuidando um pouquinho da Sam, eu vou descer para jantar. – Mike respondeu. – Vem comigo?

– Daqui a pouco, vou me vestir.

Mike saiu, deixando Lindsay sentada numa confortável poltrona, Sam se vestia.

– O que estava rolando aqui? – Lindsay perguntou com malícia.

– Absolutamente nada, ele me deu um abraço, só isso. – Sam terminou de vestir uma camiseta branca e sentou-se na beirada da cama, cansada.

– Eu já conheci vários casais, mas vocês dois formam o casal mais bonito que já vi em toda minha vida.

– Lynn… Pare com isso, nós terminamos.

– Por que não dá uma nova chance para ele? Mike te ama de verdade, eu não tenho a menor dúvida que ele seria um excelente marido para você.

Sam baixou a cabeça com desânimo, dando um suspiro lento. O quarto enorme de dois ambientes parecia ainda maior com a ausência de alguns móveis, ela ainda não conseguia ficar à vontade ali.

– Talvez, eu não duvido que Mike possa ser um bom marido, mas não para mim.

– Por que? Não tem nada te impedindo, minha irmã.

– É com Theo que eu quero reconstruir minha vida.

– Sejamos honestas, você realmente acha que um dia ela vai se recuperar de um tiro na cabeça? Se algum dia ela acordar, provavelmente terá a mentalidade de um bebê, você não pode fazer planos com uma pessoa que não está disponível.

– Ela piorou… – Sam disse com pesar, baixinho.

– O que o médico disse?

– Ela teve uma piora nos últimos dias, no quadro geral. Os órgãos estão falhando.

– Sinto muito… Mas você sabe que Deus tem um propósito para todos nós, talvez essa seja a sina dessa menina, ela tinha a missão de ajudar você, e agora que cumpriu, terminou sua jornada na Terra.

– Ela não pode morrer, Lynn. – Sam voltou a ter os olhos cheios de lágrimas.

– Continue fazendo suas orações, eu também tenho rezado por ela, para que se recupere ou que possa finalmente descansar, em paz.

Sam tinha um semblante gravemente abatido.

– Você a odeia, não odeia? – Sam indagou sua irmã.

– Não, não a odeio.

– Você foi vê-la algum dia? Quando eu estava no hospital. – Sam perguntou.

– Fui. – Lindsay suspirou antes de voltar a falar. – Eu havia criado uma imagem dela, no decorrer de nossas conversas, uma imagem nada agradável. Confesso que estava curiosa em saber como ela era, eu não tinha nenhuma informação sobre a sua aparência, então criei uma Theo com tudo de pior que uma pessoa pode ter, uma mulher da vida, vulgar.

– Me entristece saber que você pensa isso dela.

– Antes de entrar naquela UTI, eu já fazia ideia do que veria, desconfiava que ela faria jus à imagem desagradável que eu havia feito.

– É o que você acha?

– Por Cristo, Sam, ela parecia uma criança dormindo! Eu não consegui sentir nada ruim por ela, eu estava enganada.

Sam deu um sorriso torto, já as lágrimas.

– Parece que ela está dormindo, não parece? A única diferença é que não está roncando… – Sam riu, fungando.

– Eu só consegui enxergar uma garota que tentou salvar a minha irmã.

– E ela conseguiu… Minha garota… Minha garotinha… – Sam chorava.

– Não fique assim, onde está seu otimismo?

– Eu tenho tanto medo de perdê-la para sempre… De chegar no hospital amanhã ou depois e receber a notícia que ela não resistiu.

– Se isso acontecer, ela terá ido embora sabendo do que você sente por ela, não é mesmo?

– Sim, eu tive tempo de dizer o quanto a amava. – Sam apoiou a cabeça nas mãos. – Ela está lá agora sozinha, num quarto de hospital, eu deveria estar lá, ela não gosta de ficar sozinha…

– Sam, Nossa Senhora está com ela, tomando conta. Agora jante algo e vá descansar.

Na manhã seguinte, Sam pulou cedo da cama, seguindo para o hospital. Theo se mantinha no mesmo quadro, e a tarde Letícia juntou-se a elas.

– Não acha que esse quarto está meio mortinho? – Leticia perguntou, andando pela UTI.

– Como assim? – Sam estava largada no sofá cinza.

– Falta cor.

– Arranjarei algo para enfeitar, quem sabe compre flores.

– Não, nada orgânico, ok? Isso aqui é uma UTI, não um jardim.

Sam ainda se acostumava com o jeito direto e descontraído de Letícia, mas não conseguia sentir ciúmes dela, mesmo sendo ex-namorada de Theo, enxergava alguém com boas intenções reais, cuidando de Theo.

– Ok, agora sente aqui e me conte sobre o que leu secretamente na ficha dela hoje. – Sam a intimou.

– Nada mudou. – Letícia respondeu, sentando-se na cadeira ao lado do leito.

– Não ter piorado é uma boa notícia, não é? Ela vinha piorando.

– Eu estou te falando, ela vai sair dessa, dê mais crédito à garota.

– Qual sua especialidade médica?

– Anestesiologia.

– É uma grande responsabilidade, não?

– É, bastante. Mas também é gratificante, aprendo muito na interação com os pacientes.

– Você se formou há pouco tempo? Você disse que era médica residente.

– Me formei no final do ano passado, esse é meu primeiro ano de residência, e tem sido uma loucura, estou iniciando num segundo emprego.

– Você trabalha em dois hospitais?

– Agora sim, vamos ver até quando consigo equilibrar tudo.

– É uma bela profissão, admiro você por tê-la escolhido. – Sam ponderou.

Letícia virou a cadeira na direção da cama, correndo a mão pela testa de Theo.

– Era para você ter se formado comigo, mocinha. – Letícia dizia ternamente para Theo.

– Como assim? Theo? – Sam a fitou espantada.

– Sim, ela teria se formado ano passado também, se não fosse esse maldito sequestro.

– Se formado em que?

– Em medicina, o que mais poderia ser?

– Theo cursava medicina?

– Você não sabia?

– Não.

– Nunca percebeu isso? – Letícia levantou a manga da bata hospitalar azul clara que Theo trajava, mostrando uma tatuagem de cobras e asas no alto do braço.

– Então era isso… – Sam se dava conta.

– Você achou que era o que?

– Eu sabia que reconhecia esse brasão de algum lugar.

– Sim, é o símbolo da medicina.

Sam deu um sorriso torto, ainda assimilando.

– Então ela queria ser médica?

– Ela vai ser, e será a melhor pediatra de San Paolo.

– Pediatra?

– Ela ia se especializar em pediatria.

– Nossa… – Sam abriu o sorriso, mas continuava sem jeito, cabisbaixa.

– Também é uma boa área, sempre apoiei a escolha dela.

– É sim… Mas é um tanto irônico.

– Por que? Decidiram não ter filhos? – Letícia brincou.

– Eu quero, mas não posso ter filhos, eu fiz uma histerectomia na adolescência. – Sam murmurou.

– Ah, sinto muito. Bom, mas Theo quer filhos, então você deu sorte. – Letícia tentou animá-la.

Sam encarou Theo de forma triste.

– Acho que ela também não pode ter filhos.

– Por que?

Sam hesitou antes de continuar nesse assunto.

– Se ela se recuperar do coma, tem grandes chances de um dia gerar um filho. – Letícia continuou.

– Você ainda não sabe onde ela estava, não é?

– Ela estava com você, certo?

– Antes de mim.

– Num cativeiro na Zona Morta?

– Numa casa de prostituição na Zona Morta, o Circus.

Leticia congelou, fitando Sam em choque.

– Ela trabalhou por quase dois anos nesse lugar. – Sam continuou.

– Você não pode estar falando sério. – Leticia balbuciou.

– Infelizmente sim. Ela passou por situações violentas, ela deve ter se ferido várias vezes, por isso acho que ela também não tem mais condições de engravidar.

– Samantha, você está me dizendo que Theo estava esse tempo todo fazendo programas sexuais?

– Sim, mas contra a vontade dela, Elias a escravizou.

Letícia levantou-se abruptamente da cadeira.

– Preciso tomar um ar. – Saiu quase correndo pela porta do quarto.

Sam foi atrás, e a encontrou debruçada numa janela aberta. Pousou com insegurança sua mão em suas costas, lhe dando um leve afago.

– Ela é forte, ela vai superar isso com o tempo. – Sam tentou abrandar.

– Como? Como, Sam? Como deixaram fazer isso com ela? – Letícia a olhava com desespero.

– O mundo é cheio de pessoas cruéis, Theo cruzou o caminho de algumas das piores.

– Deve ter sido horrível… Meu Deus, nem quero imaginar o que ela deve ter passado.

– Ela não conversava muito sobre isso, mas o pouco que soube me deixou estarrecida.

– Ok, não me conte. Não hoje, essa bomba já foi demais por hoje. – Letícia voltou a debruçar-se sobre a janela.

– Ela precisa de nós, ela vai precisar muito do nosso apoio, nosso conforto.

Letícia apenas balançou a cabeça, concordando.

– O pior já passou, ela conseguiu sair de lá. – Sam disse.

Letícia virou-se bruscamente, abraçando Sam com força.

– Obrigada por salvá-la. – Letícia murmurou.

 

Aurora: s.f.: Amanhecer; as primeiras manifestações de qualquer coisa; princípio.

 

3 comentários Adicione o seu
  1. Eitaaaaaaaaaaa!!!! A coisa tá esquentando!!!!!!!!!! Letícia na parada !!!!!!!!!! Theo estudante de medicina!!!!!!!!!!! Surpreendo-me a cada capítulo!
    Cris, um pedido clichê: não mate a Theo, por favor!!!!!!
    Já impaciente, esperando pela próxima postagem!
    Obrigada, Cris!

  2. Obrigada por mais um capítulo! Vai ser um capítulo por dia mesmo ou você vai postar salteando? A cada capítulo lançado eu espero algum sinal de recuperação de Theo, a situação dela é bem delicada mas ela vai sair dessa. Fico me perguntando sobre o que vai fazer ela acordar? Como será que tá a memória dela? Será que vai ficar com sequelas? O que significa essa aparição de Letícia? Mike está muito quieto até agora e isso é muito suspeito, o que ele vai aprontar? Sam vai denunciar os experimentos que o exército europeu andou fazendo com seus militares? E o Tio Elias? E o Circus? São tantas dúvidas haha

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