2121 – Capítulo 8

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Capítulo 8 – Hedonismo

 

22 de maio de 2117

Mike entrou fazendo alarde na sala de jantar, onde Sam, seu pai e sua madrasta jantavam. Empunhava um tablet, mexia freneticamente no ar enquanto bradava, animado.

– Você também recebeu? Também recebeu o comunicado do comandante?

– Que comunicado? – Sam largou os talheres e foi na direção dele, assustada.

– Eu fui chamado para servir na Zona Morta!

– Zona Morta? Na área de combate? – O pai de Sam perguntou, surpreso.

– Sim, na parte norte da América, onde era o Canadá. Finalmente me reconheceram, eu vou para o combate, é uma missão importante, só os melhores são enviados!

– Que bom! – Sam respondia, confusa. – Fico feliz por você, Mike!

– Parabéns, garoto. – Elliot, o pai de Sam, um militar que servira por 35 anos no exército europeu, o abraçava com um largo sorriso. – Você é um orgulho para nós, Samantha tirou a sorte grande.

– Será que eu recebi também? Deixa eu verificar. – Sam disse, já buscando seu comunicador.

– Acredito que não seja seu momento ainda. – Mike dizia. – Estamos há menos de um ano no exército, eles vão manter você em serviço aqui em Kent por mais algum tempo, antes de enviá-la para uma missão importante, mulheres são melhores na parte administrativa.

– Eu também recebi… – Sam lia o comunicado.

– Sério? Isso é ótimo! Vamos juntos para a velha América!

– Que bom, filha, isso é reconhecimento merecido, você tem se dedicado com afinco neste primeiro ano servindo à nossa pátria. – Elliot deu um tapinha em suas costas. – Muitos anos de servidão à nossa nação ainda virão para vocês, por isso que incentivo tanto vocês a se dedicarem.

Sam não queria ir para esta missão, Mike a convenceu a candidatar-se, após fazer sua candidatura. Ele tinha sede de ir para um campo de batalha distante, enquanto Sam queria ficar servindo no quartel da sua cidade, no leste da Inglaterra, perto de sua família.

Na ocasião, ela tinha 19 anos e estava noiva de Mike desde a programação bioquímica, que ocorreu um pouco antes de completar 18. Sua irmã Lindsay tinha 23, era casada e estava grávida do terceiro filho, morava na casa ao lado.

O exército nunca foi sua primeira opção pessoal. Quando adolescente, dividia seu tempo entre a igreja e seus desenhos, gostava de desenhar lugares que nunca fora nem conhecera, inventava cidades e paisagens. No dia que mencionou a vontade de fazer faculdade de artes ao invés de seguir a carreira militar, seu pai lhe desferiu um tapa e jurou fazer sua inscrição nas forças armadas assim que completasse dezoito anos, encerrando de vez aquele assunto.

Aos nove seus pais se divorciaram, em menos de um ano Elliot havia se casado novamente, com uma esposa mais jovem e mais submissa. Sua mãe, Isabel, ainda que criada sob os preceitos religiosos e conservadores, não aceitou mais a opressão do marido e fugiu daquele casamento violento, se recusando à refazer a programação bioquímica necessária de tempos em tempos, para manutenção do amor químico.

Sua paróquia e toda a cidade a julgaram e relegaram de seu convívio, Isabel conheceu um mercador de peixes francês, um homem negro com o sorriso mais acolhedor que já vira até então, em alguns meses estavam morando numa vila pesqueira em Marselha, no sul da França. Inicialmente Elliot a proibiu de ver suas filhas.

Naquela noite festiva na casa dos Coopers, Elliot convidara Mike para jantar com eles. A noite seguiu com a família fazendo planos para o futuro, o pai de Sam prometeu que compraria um terreno naquela mesma rua, onde futuramente começaria a construção de uma casa para o casal, planejaram o casamento para alguns anos à frente, depois que ambos tivessem concluído suas missões na velha América.

– Passe a noite conosco, eu insisto. – Elliot disse a Mike, quando este fez menção de voltar para sua casa.

Perante a igreja e às crenças morais da Grande Europa, um casal que tivesse feito a programação bioquímica e os votos de noivado, poderiam dormir juntos e ter relações sexuais, mesmo antes do casamento. Mas não sem antes passar por um curso católico de noivos, que durava alguns meses e ensinava desde pratos culinários para casais, até as poucas posições permitidas no sexo, além de outras regras virtuosas. Tudo patrocinado pelo governo europeu, que mantinha uma constituição recheada de leis ditadas pela igreja católica, haviam leis até mesmo regulando a vestimenta da população.

Elliot e Mike ficaram na sala de estar assistindo um jogo de futebol, enquanto Sam e sua madrasta, Sally, lavavam a louça.

– Tem certeza que você quer ir para aquele continente decadente e imoral? – Sally perguntou, em tom confidente.

Sam continuou secando a louça, pensativa.

– Eu devo acompanhar Mike, ele é meu noivo.

– Ouço tantas barbaridades vindas de lá, que Deus tenha piedade de vocês.

– Não ficaremos muito tempo, nos disseram que essas missões duram no máximo dois anos.

– Você virá nos visitar?

– Temos direito à uma folga por ano, venho visitá-los.

Sally ficou em silêncio por um instante.

– Você não sentirá saudades da sua família? Seus sobrinhos?

Um nó surgiu em sua garganta, Sam adorava seus sobrinhos, sua maior alegria era chegar do expediente no quartel e brincar com eles na casa de sua irmã.

– Me acostumarei.

Mais tarde naquela noite, Sam aguardava Mike em sua cama, as luzes já estavam apagadas e ela já havia feito as orações ministradas no curso de noivos.

Todo o ato em si não durava mais que quinze minutos, do primeiro beijo ao momento em que Mike saia de cima dela, e a aguardava deitar em seu peito. Ele adormecia em alguns minutos. Sam era apaixonada por Mike, mesmo antes da programação química que fortalece e potencializa estes sentimentos, sentia-se atraída por ele e tinha seu prazer enquanto faziam amor. Porém ela sentia falta de algo, nunca soube o que era, parecia estar seguindo um roteiro, aprendera que sexo era desta forma, diziam que isto era o suficiente. Suficiente para quem?

***

– Theo, não aguento mais dirigir, preciso parar e deitar. – Sam reclamava, com uma mão às costas e feições de dor extrema. A noite já tomava conta, a estrada era cheia de curvas e trechos deteriorados.

– Procure no localizador algum lugar abandonado relativamente seguro para passarmos a noite, estendemos o colchão e você pode se deitar. Prefere um desses motéis de beira de estrada?

– Não posso mais gastar com isso, o dinheiro é escasso, mesmo com sua contribuição. Daqui alguns dias não teremos mais dinheiro nem para nos alimentarmos.

– Você que sabe.

– Já pode tirar os óculos escuros.

– Não uso apenas por causa da claridade, uso para as pessoas não perceberem que estou olhando para o nada ou correndo meus olhos de um lado para outra igual uma louca.

– Mas apenas eu estou aqui agora, e eu sei que você não enxerga.

Silêncio.

– É mesmo. – Tirou e guardou os óculos.

Meia hora depois, com a noite já estabelecida e o breu como companhia, o carro entrou num prédio abandonado, era um conjunto habitacional vazio, parcialmente desmoronado. Talvez estivesse vazio justamente por este fato. Sam não conseguiu colocar o carro dentro, estacionou na porta de entrada lateral do último bloco e verificou o local antes de levar os pertences para dentro.

– Aqui está ok, acho que não vai desmoronar esta noite. – Ela disse, abrindo a porta de trás do carro.

– Eu te ajudo com as coisas. – Theo disse, tentando carregar o máximo que podia, aos tropeços.

Após ajeitarem um canto para passarem a noite, Sam terminava de montar uma estrutura improvisada para que tomassem banho, com um chuveiro portátil.

– Venha aqui. – A conduziu até o banheiro. – Tome a toalha e a nécessaire, consegue se virar? – Sam disse, instruindo Theo para o banho.

– Consigo. Como estão suas costas?

– Na mesma. Vá tomar seu banho, quero tomar o meu e finalmente deitar.

Sam havia preparado um banheiro desativado para servir para o uso, seria o improviso para banho e outras necessidades. Buscou algo no carro e quando retornou passou em frente à porta do banheiro, que não existia.

Instintivamente parou, por mais que soubesse o quanto aquilo estava errado, ela não conseguia evitar. Lá dentro estava escuro, a luz da lua entrava pela pequena janela quebrada e iluminava precariamente o corpo e os braços coloridos de Theo. Ficou ali, hipnotizada, por quase um minuto, até o bom senso finalmente falar mais alto. Seguiu adiante numa bagunça de pensamentos.

Ambas haviam tomado seus banhos e comido alguma refeição pronta, com sabores que imitavam alimentos reais, e finalmente Sam pode deitar-se, após tomar um analgésico, era hora de tentar dormir.

Uma hora depois nenhuma das duas havia atingido a meta, Sam gemia e reclamava de dor de minuto a minuto, Theo permanecia acordada e preocupada.

– Vou dar um jeito nisso. – Sam levantou-se irritada, e começou a bater suas costas contra um pilar.

– Que raios você está fazendo? – Theo perguntou, assustada com o barulho que fazia.

– Tenho que desfazer o mau jeito de alguma forma.

– Pare com isso! Você vai se machucar ainda mais! – Theo sentou-se no colchão.

Sam parou, e voltou a deitar-se.

– Adiantou?

– Nada, parece que está tudo fora do lugar, eu não aguento mais… Mas vou tentar dormir, você deveria estar dormindo, já está tarde, deite e durma.

Meia hora de gemidos dolorosos depois, Theo resolveu colocar um ponto final naquele sofrimento.

– Ok, se eu não resolver do meu jeito você irá para o hospital. – Theo disse empurrando Sam, para que se virasse de bruços.

– O que você vai fazer?

– Tire a camisa. – Theo ordenou, já montada sobre ela.

– Por que?

– Tire, estou mandando. Prometo que olho para o lado.

Sam hesitou, mas acabou tirando a camiseta, sem jeito.

– Braços unidos ao corpo. – Theo falou já colocando os braços dela paralelos ao corpo.

– O que você está inventando?

– Eu sei o que estou fazendo. A primeira parte vai doer, vai assustar, você vai se arrepender de ter nascido. Mas a segunda parte é mais agradável. Pronta?

– Vá em frente, estou até acreditando que uma cega sentada na minha bunda pode me ajudar, só tente não me aleijar.

– Vou contar até três, no três você vai expirar o ar.

– Ok. Mas no ‘três’ ou no ‘um, dois, três e já’?

– Um, dois, três…

Sam inspirou o ar e soltou, Theo pressionou sua coluna na base, com ambas as mãos unidas.

– Aaaaaaai! Você me quebrou! O que você está fazendo??

– Quiropraxia. Vamos lá, novamente, agora mais para cima, vou fazer isso até chegar ao seu pescoço, ok?

– Não sobreviverei até lá.

– Um, dois, três…

Trec.

– Porra, eu ouvi isso! – Sam exclamou.

– É bom sinal, acredite. Um, dois, três…

Outro trec. E assim seguiu, um trec seguido de um ‘ai’ em alto volume, até a base do pescoço.

– Terminei a parte um, consegue mover as pernas? Como se sente?

Sam moveu as costas de um lado para outro, grunhindo algo.

– Está melhor. – Surpreendeu-se com a quase ausência de dor.

– Eu disse.

– Onde aprendeu?

– As meninas da casa me ensinaram, fazíamos umas nas outras, é milagroso.

– Isso funciona, você poderia ficar rica com essa técnica. Ok, é assustador, mas as pessoas pagariam rios de dinheiro por isso.

– Feche a matraca, vou começar a segunda parte. Coloque os braços para cima, ao redor da cabeça.

Sam prontamente obedeceu subindo os braços, estava com a musculatura contraída em parte pela timidez de estar sem camisa e com Theo em cima dela.

Quando Theo pousou as mãos abertas em suas costas, um arrepio subiu sua espinha, Sam contraiu-se ainda mais.

– Não se contraia, preciso que faça justamente o contrário, relaxe os músculos.

– Ok.

– Nossa, você é quente mesmo, hein? 38 graus?

Sam ruborizou com o comentário.

– Você vai continuar me espancando?

– Não, essa é a fase boa. – E começou a correr suas mãos e dedos pelas costas de Sam, fazendo uma massagem.

– Hunf… – Sam apreciava a massagem com bons gemidos agora.

– É bom, não é? – Theo perguntou.

– Bom? É muito bom. – Respondeu timidamente.

– Quanta tensão, oficial. Relaxe, não vou mais torturar você.

Mas era impossível para Sam relaxar, aquele era outro tipo de tortura. As mãos de Theo faziam movimentos suaves mas firmes, corriam por suas costas como um fogo brando que arrepiava seus poros, ora mexiam e apertavam seus músculos, ora acalentavam. Fechou os olhos, aquilo era como uma droga estimulante, injetada de forma afetuosa em sua veia, lhe trazendo sensações que há muito tempo não eram vivenciadas, outras que nunca haviam sequer sentido. Era bom, e gradativamente baixava as defesas com os toques lentos de dedos e mãos. Para ela aquilo estava sendo mais que uma massagem, era um carinho nunca recebido.

Sam estava chorando, baixinho, de forma contida, mas incontrolavelmente. Depois de algum tempo Theo percebeu, ouviu seu choro quase silencioso, e parou com as mãos onde estavam, preocupada.

– Eu machuquei você? – Ela perguntou, quase aflita.

– Não. – Sam respondeu, após uma tentativa falha de segurar o soluçar.

Theo não sabia o que fazer, hesitou com as mãos ainda paradas em suas costas.

– Você está bem?

– Estou, estou bem, a dor passou.

– Posso continuar?

– Pode sim. – Era impossível controlar as lágrimas, por mais esforços que fizesse, para ela o choro era como infringir a lei.

Mais alguns minutos de massagem e Theo finalizou, com dois tapinhas.

– Prontinho, está dispensada.

Sam não se moveu, não fez menção de sair dali, então Theo abaixou-se, e lhe entregou um beijo demorado em sua têmpora.

– Você vai ficar bem, sua coluna já está melhor, ok? Vai ficar tudo bem. – Theo falou baixinho, em seu ouvido, carinhosamente.

Sam apenas balançou a cabeça, concordando.

– Pode se vestir, já cobri meus olhos. – Theo disse, saindo de cima dela.

Sam sentou-se no colchão, e vestiu devagar sua camisa, movimentava-se sentindo a coluna, a grande dor desaparecera.

– Obrigada pela surra. – Sam disse, se virando para o lado, após deitar-se.

– De nada, ao seu dispor.

– Boa noite.

O rápido silêncio foi interrompido por Theo.

– Aqui é um lugar feio, não é?

– Onde estamos agora? É, acho que mesmo quando estava em atividade era um lugar feio.

– É um prédio comercial?

– Não, residencial. Tem restos de móveis espalhados por todos os lugares, pedaços de camas, cadeiras. Nas paredes tem pinturas, algumas coisas sem vida.

– Quadros?

– Sim, quadros pintados, eu adoro pinturas mas estas são… Tristes. – Sam falava num tom sincero, aberto. – Além disso o pé direito é baixo e sombrio, aqui é tipo um saguão de entrada e eu teria medo em morar num lugar como esse, tendo que passar por essa entrada todos os dias.

– Que tipo você gosta? Tem algum movimento artístico preferido? Gosto do surrealismo.

– Movimento? Não, na verdade não entendo disso, mas gosto de ver e fazer.

– Você faz?

– Por hobby, gosto de desenhar, já pintei alguns quadros também. Mas não são bons e isso ficou na adolescência.

– Não existe arte ruim. E nunca é tarde para voltar a fazer o que gosta.

– As responsabilidades da vida adulta não permitem mais esses prazeres, tudo tem sua fase, já tenho mais de vinte, meu foco agora é nas coisas sérias.

– Não é pecado ser um pouquinho hedonista. Do que você se recorda com carinho agora? Das missas ou dos desenhos?

Sam ficou em silêncio por um instante.

– Talvez um dia eu volte a desenhar. – Ela respondeu.

***

– Não poderemos parar para almoçar em restaurantes todos os dias. – Sam disse descendo do carro no início da tarde, ao estacionar num restaurante na estrada.

– Por que parou nesse? Temos refeições prontas no carro. E ainda tem um pouco do café que você fez de manhã.

– Preciso de um banheiro relativamente limpo.

– Ok, pediremos algo barato então.

– Nada de bife com batatas fritas.

– Eu não falei nada. – Theo virou o boné para trás ao entrar no restaurante, mas manteve os óculos.

Terminavam suas refeições quando três crianças de no máximo oito anos apareceram na mesa.

– Tia! Tia! Tira uma foto nossa? – Uma das crianças estendeu um comunicador para Theo.

– Deixe que eu tiro. – Sam apanhou o comunicador da mão dela e levantou-se, fazendo a vontade das crianças. Tirou dezenas de fotos e voltou ainda estampando um sorriso aberto para a mesa.

– Desculpe tomar o comunicador de você, tia. – Sam falou.

– Sem problemas, eu provavelmente tiraria fotos do teto. Se divertiu com elas?

– Sim. Morro de saudades dos meus sobrinhos, eles faziam minha felicidade.

– Tem quantos?

– Três, são filhos da minha irmã.

– Lindsay, que conversa com você todas as manhãs e que não gosta de mim.

– Isso. E não é que ela não gosta de você, ela só acha que talvez você me atrapalhe, mas eu não concordo e ela respeita minha opinião.

– Ela vai me adorar quando me conhecer. Mas me diga, quantos anos tem seus sobrinhos?

O caçula, Oliver, tinha apenas dois meses quando vim para a América na missão do exército, e está enorme! Tem quatro anos agora. Amanda tem seis anos, e Gerard tem sete. Eu os vi no meio do ano passado, quando fui visitá-los na folga anual, e é incrível como estão ficando cada vez mais bonitos e espertos. Amanda é a melhor aluna da sua turma, e Gerard participou no fim do ano da peça natalina da nossa igreja, Lynn me mandou as fotos, ele foi um dos anjos. – Sam falava animada e orgulhosa.

– Você deve ser uma tia orgulhosa e que mima horrores.

– Mimo, admito. Você tem sobrinhos?

– Não tenho irmãos.

– Mas um dia terá seus filhos, pode ter certeza que você irá mimar muito mais que isso. Eu terei que me policiar para não estragar os meus.

– Seremos mães corujas, pode apostar.

– Com certeza! Adoro essas pestinhas. Mas dão tanto trabalho… Crianças são uma benção e uma função. Quando ficam doentes então? Meu coração fica apertado quando Lynn diz que algum deles está resfriado ou que ralou o joelho.

Theo mudou radicalmente de semblante, do sorriso bobo para uma expressão de surpresa, boquiaberta.

– Puta que o pariu! Crianças!

– O que? – Sam não entendia aquela atitude como se Theo tivesse visto um fantasma.

– Claro! Crianças! SCR!

– O que tem SCR?

– Aquelas letras no líquido misterioso que você roubou, SCR! Meu Deus, era tão óbvio!

– Ou você começa a me explicar o porquê desse alvoroço todo ou vou te internar num hospício.

– SCR é o nome de uma vacina infantil, que era aplicada em todas as crianças de 12 meses antigamente, mas não se aplica mais, tem décadas que estas doenças estão extintas.

– Que doenças?

– SCR é uma vacina tríplice, que significa sarampo, caxumba e rubéola, elas estão erradicadas há décadas.

– Então aquele líquido é uma vacina infantil que não está mais no calendário infantil há décadas?

– Exato.

Sam assimilava a informação, refazia suas teorias, enquanto Theo confirmava as suas.

– E o governo está aplicando estas vacinas?

– Sam… Eu não tenho certeza de nada, nem quero encher sua cabeça com teorias mirabolantes porque isso contaminaria suas suposições. É melhor que você não tome conhecimento dos boatos que eu sei porque isso te influenciaria, uma de nós precisa se manter isenta disso.

– Mas eu preciso saber algo sobre as vacinas.

– Isso é coisa grande, é uma coisa grande e cruel, mas agora tudo faz ainda mais sentido. – Theo esfregava os pulsos, correndo os olhos no nada ao lado.

– Então o Beta-E está sendo colocado em vacinas infantis?

– E sabe-se lá no que mais.

– Que raios é esse Beta-E?

– Não sei, mas esse assunto será desbloqueado entre nós no momento em que tivermos mais informações concretas, ok?

– Não pode me contar mais nada?

O comunicador de Sam começou a bipar.

– Mike. – Ela constatou, olhando para a tela. – Depois eu o respondo.

– Fale com ele, não o deixe esperando.

Alguns minutos de conversa por texto depois, em que Sam teclou com o mesmo semblante desanimado do início ao fim, finalmente despediu-se e desligou.

– Más notícias? – Theo perguntou.

– Não. Mike foi condecorado e ganhou sua sexta medalha de honra. E hoje fizeram uma corrida de carros blindados numa área deserta, estavam de folga.

Theo segurou o riso.

– Você deve estar morrendo de saudades dele, não é? – Ela perguntou.

– Sim, mas na verdade achei que sentiria mais… Acho que toda essa preocupação tem ocupado minha cabeça em tempo integral.

– Vocês fizeram a programação bioquímica? – Theo perguntou, curiosa.

– Fizemos, antes de entrarmos nas forças armadas.

– Então você tinha 18 anos quando resolveu que Mike era o amor da sua vida e para toda eternidade?

– 17. Completaria 18 alguns meses depois. E não resolvi nada, eu sempre soube que era com ele que eu queria passar o resto da minha vida. – Sam respondeu.

– Não te incomoda não saber a origem do amor que vocês sentem um pelo outro? Com a possibilidade de que seja somente a química artificial agindo nos cérebros de vocês?

Sam olhou cabisbaixa para suas mãos cruzadas sobre a mesa, e confidenciou:

– Removeram minha programação.

– No dia que você morreu?

– Shhh. Não fale isso alto. Sim, foi nesse dia.

– Então você continua o amando? Sem química, sem oxitocina, dopamina, serotonina… Esse monte de ‘ina’s artificiais que injetam em vocês?

– Claro, meu amor por ele não era só químico. Eu realmente o amo. Você nunca fez a programação?

– Nunca. E nunca farei.

– Por que não? Não quer ficar para sempre com a pessoa que você ama? – Sam perguntou, simploriamente.

– É uma bela contradição isso que você acabou de falar. – Theo sorriu. – Se eu amo genuinamente, não preciso desse processo absurdo.

– Não é absurdo, todo mundo na Europa faz.

– Na Nova Capital nem todos fazem, e eu sempre defenderei o fim da manipulação dos sentimentos. É trapaça, é uma trapaça que você faz com você mesma.

– Não concordo com você, Deus coloca a pessoa correta na sua vida com o propósito de uni-los para sempre, a programação evita que as pessoas caiam em tentação, que destruam suas famílias, evita a infidelidade e faz o casal nunca passar por más fases.

– Onde você decorou isso? Na igreja ou na escola?

– Em casa, eu tive ensinamentos de valores e bons costumes desde criança.

– Tenho certeza que Deus se contentaria apenas com o amor natural.

– Como você pode achar o que é certo ou errado perante Deus? Você vive em pecado! – Sam disse, já se exaltando.

Theo resolveu encerrar a discussão, que tomava ares acalorados. Abriu um sorriso antes de falar.

– Sam, eu desejo de todo meu coração que você seja feliz com Mike, com ou sem programação química. Eu quero muito que você tenha uma vida boa e longa ao lado de alguém que você ame e que te trate bem, você merece isso.

– Obrigada… – Respondeu, encabulada. – Vamos seguir viagem?

***

Pouco mais de uma hora depois, seguiam por uma estrada estreita e deserta, passava das três da tarde e Theo cochilava com a cabeça caída na janela. A paisagem se alternava entre zonas áridas com vegetação e algumas árvores esparsas, subiam agora para a parte alta daquela região, nas laterais apenas barrancos, por isso Sam guiava com mais cuidado e menos velocidade. Poucos carros transitavam por ali.

– Aquela dor nas costas me roubou algumas horas de sono, estou sentindo falta destas horas agora. Será que ainda tem café?

Theo apenas emitia um ronco baixo de tempos em tempos.

– Obrigada pela resposta, mas seu ronco não conta como conversa.. – Sam continuou.

– Ãhn?

– Continue dormindo.

– Obrigada.

Sam passou a olhar preocupada pelos retrovisores.

– Theo, acorde.

– Decida-se, durmo ou acordo?

– Tem um carro nos seguindo. – Olhava preocupada na tela no centro do painel.

Theo ergueu-se, sentando de forma normal.

– Tem certeza? Dê passagem para ele.

– Esse carro esportivo preto estava no estacionamento do restaurante quando saímos. Já dei passagem para ele duas vezes, reduzindo a velocidade, mas ele não ultrapassou. Havia sumido, achei que tinha pego outro caminho, mas agora que diminui a velocidade voltei a vê-lo atrás de nós.

– Consegue ver quem está dentro?

– Dois homens.

– Pare o carro no acostamento, quem sabe eles passem.

– Aqui é deserto, não tem nada ao nosso redor a não ser árvores e barrancos, não sei se é boa ideia parar o carro. – Sam batia os polegares no volante.

– Qual a próxima saída?

– Dentro de 9 quilômetros.

– Pegaremos esta saída então, depois voltamos para a rodovia.

– Ok, vou fazer isso. Mas antes vou dar passagem novamente, vou reduzir.

Sam reduziu a velocidade e prontamente o carro negro saiu de sua traseira, acelerando e a ultrapassando pela lateral. Ela acompanhava atentamente a ultrapassagem, finalmente o carro suspeito sairia do seu encalço.

Quando estavam emparelhados, Sam tentou olhar pelos vidros, mas não conseguiu ver nada dentro do outro carro. Após a ultrapassagem, Sam já estava com um semblante aliviado, e então tiros foram disparados do carro negro na direção dela, que por instinto abaixou-se, perdendo o controle do volante. O carro delas fez uma curva à esquerda, batendo na traseira do carro negro, em seguida despencou num barranco alto, parando 30 metros abaixo, numa colisão violenta contra uma grande árvore.

 

Hedonismo: s.m.: É a doutrina geral do prazer. É a busca sem limites pelo que proporciona prazer.

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7 comentários Adicione o seu
  1. Programação bioquímica???? Fantástico! Adorei! Nunca pensei em tal coisa, eu que sou toda das áreas das químicas, nunca pensei nessa possibilidade, programar o amor que se sente por alguém! Uau, a sua imaginação não para de me surpreender. Dei comigo a pensar que se tivesse feito essa programação da primeira vez que pensei estar apaixonada, estaria bem tramada agora…. provavelmente estaria desesperada à procura da desprogramação….Hehehe. Obrigada por mais estes capítulos. Vou mergulhar no próximo. Bom fim de semana.

    1. Olá Ana!
      Que maravilha, achei alguém da área química! Não sou dessa área (apesar de ter me formado como técnica em Saneamento), mas me interesso por essas “manipulações” bioquímicas. Minha base de estudo para a criação de 2121 é o trabalho de uma cientista chamada Helen Fisher, inclusive ela foi convidada a dar uma previsão sobre o futuro próximo, e esse é o trecho do seu texto em que mais me inspirei para criar o plot de 2121:
      Helen Fisher, bióloga – Universidade Rutgers
      Segurar a mão de alguém gera uma sensação de confiança – porque estimula a produção do hormônio ocitocina. Quando você vê uma pessoa rindo e tem vontade de sorrir também, é por causa de um tipo de circuito cerebral: os neurônios-espelho. Num beijo de língua, a saliva fica carregada de testosterona (que estimula o desejo sexual). Nós já começamos a descobrir o que move as emoções humanas. No futuro, vamos entender os mecanismos que regem todos os nossos desejos e sentimentos. Isso levará à criação de um novo arsenal de substâncias químicas, que cada vez mais as pessoas usarão para manipular sua própria mente. E, ao mudar as mentes, uma de cada vez, vamos mudar tudo o que existe.

      Ou seja, minha cara Ana Sofia, a manipulação das substâncias responsáveis pelo “amor” é realidade, logo minha ficção fará parte do mundo real, incrível essa área, não é? Eu assisti algumas palestras dela, e são ótimas, se tiver interesse procure as TED talks dela.
      Gracias a Dios nem eu nem você fizemos a programação em nossos primeiros relacionamentos! ahuahuaha
      Ok, já falei demais, às vezes me empolgo…
      Beijos, e nada de fazer programação bioquímica quando for possível, ok?

  2. Eu acho que elas deveriam tomar um banho de sal grosso, pq é muito perrengue .rsrsrs Em todo caso, se precisa de muita aventura ainda até a Sam abandonar seus preconceitos.

    1. Oie Clara!
      Vou ver se no ano 2121 ainda existirá sal grosso, se existir providenciarei um bom banho para elas. Umas folhas de arruda dentro do carro talvez ajude também.
      Os perrengues acabam criando ainda mais conexões entre elas, e isso é bom, não é? xD
      Brigada, beijão!

  3. Oieeee Schwinden do meu coração (pra amansar que cheguei atrasadona!! rs)
    Nossa, sua viagem foi uma decepção pra vc né, mas fique assim não, que melhores virão! !! Nem vai lembrar dessa…rs.
    Vamos ao comentário. .
    Mike é um ..nao consigo encontrar um adjetivo q defina ele..rsrs.”Mulheres são melhores na area adm..”, seu sem cérebro! ! kkkkkk.Dentro do sistema, ser n pensante…claro q ele qr ir pra batalha pq é um sem noção.E Sam coitada, como muitos, teve q fazer o q o pai queria,deixado o desenho e sendo a melhor q poderia ser dentro do exercito, assim o pai ticaria orgulhoso e esqueceu td q qr, apenas seguiu o fluxo…mas ai, Theooo chegou uhuuu pra destruturar tudoo..
    Mãe de Sam, arrebentou e ainda casou c um negro!!:).
    Oxee, quem precisa disso de programação bioquímica. .ta c nada isso…Samm!! Theo e Sam n vao tomar nada…o amor é algo e o desejo é outro e a fidelidade é uma escolha pq tentação sempre vai existir, n precisa dessa porra naoo rsrs.Muito bem Theooo! !
    O pai de Sam, claro pegou uma submissa, q é mais fácil, n vai deixar ele…rs
    Mike machista, ela pegou um q nem o pai…nem amar uma mulher dessas sabe…serio q 15 minutos e assim. .isso sim q é desperdício. .ser hetero assim! Hahahahahaha
    Massagem boa…Sam quase infarta!!rsrs..
    Muitooo bom o capítulo, sempre é pq vc tem magia nas mãos e tem una mente mais mágica ainda pra transformar o q vc pensa em palavras tão lindas e histórias tão envolventes! !
    Vou pro próximo capítulo. .beijooosss

    1. Sabe, eu sabia que postando a história apenas aqui no meu blog eu teria menos visibilidade e menos feedback (leia-se: menos comentários). Mas olhando agora os comentários que tenho recebido, não tem como não amar isso tudo, provavelmente eu estaria recebendo mais comentários no Abcles, e possivelmente irei postar lá futuramente, mas o feedback que tenho recebido aqui é muito mais elaborado e dedicado, é aquela coisa do qualidade versus quantidade, geralmente temos que escolher uma coisa apenas, e agora vejo que escolhi certo.
      Ok, esse foi o prólogo do meu comentário, isso tudo era apenas para dizer que tenho adorado seus comentários, estão mais críticos e especulativos (aquela velha história de vc ser minha leitora crítica). Obrigada.
      Sobre suas ponderações, você está certa, e aquele lance que o médico lá da clínica falou também é verdade, existem 3 estágios do amor, na verdade são tipos, e cada tipo utiliza determinadas substâncias químicas. Tá muito nerd esse papo né? Então viva o amor natural!
      Theo é motherfucker!! Tá metendo os dois pés nas convicções de Sam sem que ela perceba. (Spoiler: veremos o resultado disto quando Mike estiver com Sam (estou escrevendo essa parte)).
      Obrigada de novo, pelo final do seu comentário, a mágica está em todos nós (leia isso com a mão em seu peito e suspire).

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