Capítulo 59 – Hiraeth
Theo percebeu que anoitecia lá fora, a luz proveniente dos postes invadiam alguns pontos do galpão, onde ela permanecia acorrentada pelo pé a um tubo metálico no chão, e sobre um colchão. Havia sangue seco abaixo do seu nariz, bem como na lateral do seu rosto e testa, vestígios da sessão de violência da noite passada. Tinha espasmos recorrentes por conta do frio.
Por causa do sedativo que Elias ministrava de tempos em tempos, seu estômago estava terrivelmente embrulhado, não havia conseguido comer o pão que ele havia trazido mais cedo, estava apenas com uma mordida.
– Se não comer agora não come mais. – Elias disse ao entrar no recinto, por volta da meia-noite. – Porque vou te apagar totalmente, a viagem de naviovai começar daqui a pouco.
Theo ergueu a cabeça, estava deitada de lado, grogue. O segurança de um braço só a vigiava recostado numa pilastra de madeira, o outro vigiava a porta do lado de fora.
– Sirva-se. – Theo respondeu zombando.
– Tem algum último pedido antes de te colocar para dormir?
– Quero meu casaco.
– Eu joguei num lago na cidade vizinha, para despistar a polícia.
– Então um cobertor, eu estou congelando.
– No navio não faz tanto frio, aguente mais um pouco.
Elias agachou ao seu lado, pousando a mão em seu rosto e correndo o polegar pelo sangue abaixo do seu nariz, para desconforto de Theo.
– Eu não gosto de fazer isso com você, eu tenho sentimentos paternais por sua pessoa, eu quero cuidar de você.
Theo ergueu seus olhos inflamados de raiva na direção do tio.
– Eu só quero arrastar você para o inferno comigo. – Ela disse entredentes.
– Sua sina é me servir, sobrinha. – Elias exibiu um sorriso debochado. – Você vai me servir por muito tempo.
– Um dia você vai pagar por tudo isso.
Elias balançou a cabeça sorrindo em resposta, ainda agachado tirou uma caixinha do bolso do sobretudo, com uma seringa no interior. Pelo ombro, empurrou Theo para que ela virasse para cima. Ela mantinha os punhos cerrados, e um olhar resignado acompanhava os movimentos do tio.
– Boa noite, minha prostituta preferida. – Elias disse encostando seus lábios nos lábios dela.
Tomada por imensa raiva, Theo cravou uma lasca de madeira no pescoço de Elias, que estava guardando ao lado do colchão. Ela não estava tão grogue quanto aparentava, ela ainda estava viva neste jogo doentio.
– Sua puta! – Elias gritou em desespero, e arrancou a lasca.
Theo aproveitou o momento de dor para afanar a seringa de sua mão. Ela estava prestes a penetrar a agulha em seu tórax, quando ele percebeu e rolou para o lado. O segurança de um braço só correu em socorro, apontando a arma para Theo que estava sentada no chão em posse da seringa.
– Quem vai querer dormir? – Theo provocou erguendo a seringa.
Elias ficou de pé a certa distância dela, e bradou raivosamente.
– Me dê essa merda!
– Vem pegar. – Além da adrenalina tomando conta de seu corpo, ainda havia uma forte tontura e seus músculos não respondiam adequadamente.
– Posso atirar, chefe? Só para fazer largar. – O segurança perguntou.
– Não, ela vai me entregar por bem, porque se não me entregar por bem, ela vai ter uma noite mil vezes pior que a de ontem. – Elias ameaçou, permanecia com a mão cobrindo o ferimento no pescoço.
– Eu vou entregar por bem, venha buscar.
– Tome logo isso dela! – Elias mandou.
Apontando uma arma, o segurança bigodudo se aproximou dela com hesitação, ela ergueu a seringa para ele, a oferecendo. Ele guardou a pistola no cós da calça e estendeu sua única mão na direção do objeto, Theo penetrou a agulha em seu braço e apertou o êmbolo até o fim.
– Filha da puta! – Elias disse e se atirou para cima dela e do segurança que caíra já sentindo o efeito do forte sedativo.
Elias a golpeou no rostos algumas vezes, Theo conseguiu se defender como pode com as mãos e escapulir por baixo de seus braços, indo na direção do segurança grogue. Lhe roubou a arma presa em sua calça, e ainda deitada de costas, apontou na direção de Elias, que chutou sua mão.
A arma não saiu de suas mãos, com os cotovelos a erguendo do chão virou novamente na direção de Elias, que correu para trás de uma pilastra larga central. Quatros disparos foram feitos, mas nenhum o atingiu.
Ela sentou-se, aguardou por longos segundos para que Elias saísse de seu esconderijo, ela não sabia se ele estava armado, mas parecia não estar. O outro segurança apareceu correndo, de arma em punho.
– Se você se aproximar mais um passo eu estouro suas bolas! – Theo gritou apontando a arma para ele.
Aquele duelo ofegante ficou desesperador e silencioso. Após encarar o homem negro e grandalhão por algum tempo, Theo começou a pensar de forma mais ordenada. Se arrastou para o lado, ficando atrás de um tambor metálico, mas não deixando de fazer mira ao segurança. Elias permanecia em seu posto.
– Atire nela, Oswald! – Elias bradou. – Atire no ombro ou na perna!
– Solte a arma, querido Oswald, não quero ferir você. – Theo falou com a respiração pesada.
O segurança de um braço só que estava caído mexeu-se com sonolência, grunhindo alguma coisa. Theo atirou duas vezes em sua cabeça sem pestanejar.
– Serviço finalizado. – Ela rosnou baixinho vendo o sangue correndo por baixo do corpo dele.
– Você vai me pagar caro por isso, sobrinha. – Elias disse. – Vai fazer hora extra por um mês.
Ela não sabia quantos projéteis ainda restavam na pistola prateada, mas precisaria arriscar pelo menos um tiro na corrente que prendia sua perna, seu perímetro era pequeno e limitado demais com aquela amarra.
Sentada atrás do tambor, esticou a perna e olhou rapidamente para os elos da corrente. Olhou ao redor para verificar se os inimigos permaneciam em suas posições. Não avistava mais Elias, porém o segurança continuava ali, de arma em riste.
– O negócio é o seguinte. – Ela começou a falar em voz alta. – Eu só quero sair daqui, sem machucar vocês. Eu vou tirar essa corrente do meu pé e vou sair desse lugar, prometo que irei embora sem olhar para trás.
Nenhum ruído sequer foi ouvido, além do vento que assoviava com uma nevasca do lado de fora. O galpão era grande, abarrotado de coisas náuticas, com cheiro de óleo diesel, e a maior parte estava mal iluminada. Theo suava frio, hesitante com o tiro que precisaria disparar rente à sua perna, e sem saber onde Elias havia se enfiado.
De forma acelerada e desconexa, uma enxurrada de pensamentos passou pela mente de Theo, as chances de sair vitoriosa daquele duelo enervante eram mínimas. Havia passado o dia lutando contra os pensamentos sobre seu futuro, novamente aprisionada no pior pesadelo de sua vida, tentando pensar em formas de fugir, e também se perguntando se um dia voltaria a ver Sam. Se um dia voltaria a senti-la.
O segurança teve a atenção atraída na direção de uma outra pilastra, onde provavelmente estaria Elias. Era o segundo de desatenção que ela precisava. Disparou oito vezes na direção do grande homem de sobretudo de couro, que despencou para trás. Após os oito estrondos, novamente o silêncio.
Theo olhava atentamente para todos os lados, passou alguns longos segundos nesta perscrutação em que podia ouvir o coração batendo como tambores. Era hora de libertar-se, mirou a pistola num elo da corrente próximo do tornozelo, sua visão não era como antes, enxergava mal. Segurando com ambas as mãos trêmulas, disparou na corrente e errou. Segundo disparo, e o elo se partiu.
Apressou-se em retirar a corrente que estava traspassada em seu pé, mas este instante de distração lhe custou caro. Elias a golpeou na lateral da cabeça com uma tábua, a deixando sem os sentidos por alguns segundos. Quando voltou a si, Elias já acorrentava seu pé novamente.
– Não… – Balbuciou e chutou o rosto do tio, que caiu para o lado antes de prendê-la.
Enxergou a pistola caída a uns metros, se atirou na direção dela, a tomando como se fosse sua salvação. Ainda sentada, apontou para o tio, que já estava de pé.
– Não se aproxime. – Theo disse nervosamente, descia um grosso filete de sangue pela lateral de sua testa e rosto.
– Você não faria isso com seu tio. – Elias respondeu com um sorriso convencido.
– Eu fiz com meu pai. – Theo proferiu estas palavras e apertou o gatilho.
Apenas um clic pode ser ouvido. Clic, clic, clic, clic. Não havia mais munição.
– Ah, sua vagabunda estúpida.
Elias se aproximou lentamente de Theo, que escorregava para trás até bater com as costas num tambor metálico.
– Um de nós dois não vai sair vivo daqui. Talvez nenhum dos dois. – Theo resmungou.
– Eu vou levar você para a Zona Morta, com ou sem vida, achei que você deveria saber disso.
Theo levantou do chão e o encarou de forma dura, tinha a cabeça erguida e sangue tingindo seu suéter cinza. Elias deus alguns passos para trás, abaixou-se e tomou a corrente nas mãos, lhe erguendo em seguida.
– Se você me deixar prender esta corrente em você prometo que não irei te machucar.
– Isso não vai acontecer.
– Facilite para nós dois. – Elias disse, e assim que começou a andar na direção dela, Theo saiu correndo.
Suas pernas a traíram e ela caiu poucos metros depois num monte de cordas grossas. Elias a alcançou rapidamente, e golpeou a corrente em seu rosto.
– Pare! – Elias vociferou com raiva, Theo se debatia e tentava sair dali.
Seu tio largou a corrente e abaixou-se, a puxou do chão pela gola. A atirou com força contra uma pilastra de madeira e lhe aplicou alguns socos, que lhe tiravam mais sangue.
– Durma logo! – Elias gritava enfurecido enquanto a batia. – Apague!
Theo conseguiu encaixar um chute com o joelho entre as pernas dele, mas não foi o suficiente para que ele a largasse, tentou fugir em vão. Elias a atirou sobre uma pilha de peças e engrenagens ao lado, lhe arrancando um uivo alto de dor.
Ela desceu lentamente a mão direita trêmula pela lateral do corpo, até encontrar o que havia lhe causado aquela dor aguda, uma peça metálica e fina havia penetrado suas costas pelo menos dez centímetros.
– Machucou as costas? – Elias perguntou já com os pés ao lado de seus joelhos.
O choque e a dor não deixaram que nenhuma palavra saísse de seus lábios, que tentaram balbuciar algo.
Elias abaixou-se para olhar melhor o que havia acontecido, e conseguiu visualizar que ela estava com o corpo preso naquela haste.
– Ótimo, finalmente vai ficar quieta.
Deu alguns passos para o lado e tomou a corrente que estava caída. Voltou a ficar de pé sobre Theo, a fitou com um sorrisinho de desdém.
Theo trincou os dentes o encarando, algumas lágrimas de dor foram derramadas e não passaram despercebidas por Elias.
– Está doendo? Que pena.
– Me tira daqui. – Theo disse baixinho, entre soluços. Evitava se mexer.
– Vai deixar eu te acorrentar?
– Vou.
– Então fique quietinha. – Elias abaixou-se e ergueu o pé dela, dando duas voltas com a corrente.
Theo fechou os olhos com força, buscou todas as forças em seu corpo, e com um grunhido gutural ergueu-se, soltando-se da haste metálica cravada em suas costas. Derrubou Elias no chão e acertou dois socos em seu rosto, mas suas mãos foram seguras pelo tio, que rolou no chão sobre a pilha de peças.
Elias a virou de bruços e passou a bater o rosto dela contra as peças. Cortes e escoriações iam surgindo à medida que ele tentava deixá-la inconsciente. Finalmente Theo apagou.
– Até que enfim, que insistência! – Elias reclamou e ergueu-se.
Novamente foi em busca da corrente, enquanto isso Theo abriu os olhos, havia fingido a inconsciência. O rosto profusamente ensanguentado era um obstáculo, olhou ao redor procurando algo com que pudesse se defender. Ou atacar.
Num gesto rápido, esticou o braço e tomou uma peça metálica pontiaguda. Virou-se e a enfiou na coxa de Elias, que gritou raivosamente.
Theo levantou-se do chão e correu cambaleante na direção de algo que vira pendurado na parede momentos antes. Tomou o arbalete da parede, pegou um arpão de um tambor repleto deles, e o engatilhou. Elias, que vira correndo, parou abruptamente quando Theo lhe fez mira.
– Abaixe isso. – Elias disse gesticulando.
A jovem passou as costas da mão sobre os olhos e sobrancelhas, para remover um pouco do sangue que atrapalhava sua visão. Respirava com tanta força que sentia os pulmões arderem, a dor do ferimento nas costas concorria em intensidade com a dor que sentia na cabeça, que havia sido massacrada. A energia do momento a mantinha de pé, uma adrenalina eletrificava todo o corpo.
– Essa tem munição, está vendo? – Theo provocou.
– Eu duvido que você acerte uma coisa dessas em mim.
Elias deu um passo inseguro para trás.
– Eu vou atirar se der mais um passo. – Theo alertou, segurou com força na arma, não conseguia fazer mira, a visão estava turva e o sangue continuava invadindo seus olhos.
– Eu vou ficar aqui de pé esperando você perder mais sangue e desmaiar. – Elias riu e deu alguns passos para trás, mas ainda de frente para sua sobrinha.
Theo atirou, a mira não foi boa e o arpão acertou sua outra coxa, próximo ao joelho, fazendo com que ele caísse para trás. Recarregou rapidamente o arbalete e correu como pode na direção dele. Elias tentou sentar-se, mas Theo enfiou o solado de sua bota no peito do seu tio, fazendo com que deitasse novamente. Deu um passo para trás e apontou a longa arma na direção da cabeça dele.
– Era isso que você tanto queria, não é? – Elias debochou.
– Eu não vou matar você. – Desceu a mira e atirou entre as pernas dele, em seus genitais, lhe arrancando um berro de dor. – Não agora.
O irmão Archer bastardo estava agora em situação vulnerável, com as mãos entre as pernas e gemendo, enquanto girava de um lado para outro.
Theo caminhou rapidamente até o local onde haviam mais arpões, e tomou dois, prontamente engatilhando um no arbalete. Caiu, mas voltou a ficar de pé ao lado do tio, brincou com a arma.
– Prefere aqui ou aqui? – Theo perguntou, passando a mira da cabeça para seus genitais.
– Puta do inferno! Eu vou te matar! – Grunhiu com dor.
– Está doendo? Que pena.
Theo riu e atirou novamente entre suas pernas.
Assistiu por um instante o sofrimento desesperado do tio, o sangue invadindo a calça jeans dele, as marcas de expressão no rosto ainda mais aparentes, os olhos azuis pedindo clemência. Engatilhou o outro arpão e deixou a arma caída ao lado do corpo, voltou a observá-lo.
– Qual a sensação de saber que você nunca mais vai comer ninguém? – Theo zombou. – Nem mesmo a mim.
Elias não respondia. Tomado pela dor, só lhe restava gemer.
Theo pousou seu pé em cima do ferimento da perna, arrancando o arpão e outro grito de dor dele.
– Você tem ideia de toda dor que senti por sua causa? Você sabe o que fez comigo? Você sabe, tio?
– Sua… – Elias já não se movia com desespero, seu rosto suado parecia desfalecer.
– Sua o que? Puta? Vadia? – Theo pisou em seus genitais. – Responda!
– Infeliz. – Elias murmurou, sua respiração cada vez mais pesada.
– Não por muito tempo.
Elias virou a cabeça na direção dela, a fitando com olhos raivosos.
– Você vai comigo.
Elias proferiu estas palavras e segurou firme na canela de Theo, a puxando e derrubando em seguida. Ele sentou e projetou-se na direção dela, que ergueu com dificuldade o arbalete e disparou com pressa, ainda deitada.
O arpão penetrou no rosto de Elias, logo abaixo do olho.
Apoiada nos cotovelos, Theo assistiu o corpo dele tombando devagar para trás, ainda com semblante assustado. Ajoelhou-se apressada ao lado dele, assistiu paralisada por alguns segundos alguma possível reação de seu tio, mas nada aconteceu, ele permaneceu inerte.
Abaixou-se e conferiu a pulsação em seu pescoço, não havia. Uma satisfação inesperada preencheu seu corpo, um alívio travestido de raiva, que transpirava de todos seus poros.
Sentou-se sobre suas próprias pernas, ainda observando o corpo à sua frente, largou o arbalete no chão. Era o fim.
– Um Archer a menos. – Murmurou num tom sombrio.
Após seu momento de contemplação e exorcismo, Theo caia na real.
– Eu não posso ser presa. – Disse olhando para os lados, havia mais dois corpos pelo galpão. – Vão me incriminar.
Ergueu-se com dificuldade, o ferimento nas costas latejava como ferro quente. Deu passos calculados pelo galpão, avistou alguns tambores metálicos pretos num canto. À sua frente havia uma grande porta de duas folhas que dava para o mar, por onde o barco descia. Próximo a esta porta, viu um alçapão no chão, com uma corda como alça. Forçou a unir seus pensamentos numa solução para esconder os corpos.
Abriu e deitou um dos tambores e rolou até ficar em frente ao corpo do segurança de um braço só. O arrastou para o interior, mas não conseguiu que todo o cadáver se ocultasse ali dentro, uma parte ficava para fora.
Lembrou de algo que vira na parede, uma motosserra. Buscou a ferramenta e testou, estava funcionando. Aos tropeços, posicionou-se de frente para as pernas do segurança. Ligou a motosserra, sabia o que precisava fazer, mas tentava reunir a coragem que lhe faltava para iniciar aquela sessão de esquartejamento.
– Faça de conta que é um cadáver da faculdade de medicina. – Incentivou a si mesma.
Com a manga da blusa, que estava tomada de vermelho, enxugou o sangue que lhe incomodava a visão. Os ferimentos em seu rosto eram muitos e um olho já estava com a visão reduzida por conta de um inchaço. Percebia sua energia se dissipando e o sangue esvaindo, não tinha muito tempo.
Com um grito grave e alto, que parecia vir diretamente do fundo de seus pulmões, empunhou no alto a motosserra já ligada, e a deitou no meio da coxa do homem bigodudo. De forma desajeitada e nada limpa, o corte ia se aprofundando, à medida que o sangue se espalhava. Era mais trabalhoso e demorado que o imaginado, levou algum tempo para atravessar o fêmur.
A primeira das seis já havia ido, sem parar para pensar no que estava vendo e fazendo, dedicou-se ao segundo membro, que decepou-se um pouco mais rápido. Largou a motosserra e enfiou as pernas dele para dentro do tambor, foi até a pilha de peças e coletou dois blocos maciços e pesados, colocando um por vez com imensa dificuldade no interior, junto ao corpo, o tampando na sequência. Rolou o tambor até o alçapão, ergueu a tampa de madeira, e escutou aliviada o barulho do metal batendo contra as águas do rio abaixo.
Sem perder tempo, partiu para o outro segurança, seu estômago embrulhava-se cada vez mais, sentia-se zonza, parou para vomitar. Ao finalizar os dois desmembramentos, não conseguiu colocar uma segunda peça dentro do tambor, caindo para trás. Com outro grunhido animalesco levantou-se e colocou o bloco de metal para dentro do tambor, terminando com o mesmo destino do anterior.
Ao deparar-se com o terceiro e último corpo, um arrepio congelante subiu sua espinha.
– É só um cadáver, só um cadáver. – Repetia para si.
Mas era seu tio e seu algoz. Seu inferno e seu monstro. Morto. Surgiu na memória as lembranças de quando chegou no Circus, o que sentiu quando esteve pela primeira vez com seu tio naquele escritório com cheiro de perfume doce e barato, um cheiro que ficaria entranhado em suas narinas, lembrou do que ele lhe fez. Largou a motosserra, esfregou os dedos nas têmporas, voltou a fitá-lo, agora com um semblante repleto de amargor.
– Será que Sam faria uma prece por sua alma? – Balbuciou com desânimo. – Será que você encontrou meu pai? Ou o diabo?
Arrancou todos os arpões que estavam espetados no corpo, retomou a motosserra e fez o trabalho, finalizando aquilo que certamente ficaria em sua memória para sempre. Largou rapidamente o aparelho no chão e se pôs a vomitar, não havia muito em seu estômago, mas uma náusea absurda a fez revirar suas entranhas.
Finalizado o ocultamento dos cadáveres, atirou a motosserra no rio e fechou o alçapão. Era hora de sair dali, buscar socorro, seu corpo estava próximo de um colapso.
Saiu do galpão e foi surpreendida por uma nevasca leve, flocos de neve tão pequenos e lentos que pareciam desafiar a gravidade. Tentou se localizar, mas tudo que percebera era que estava na região do porto, longe de tudo, principalmente do Centro e sua casa temporária.
– Dimitri, píer nove. – Lembrou que seu colega de cafeteria sempre a convidava para visitá-lo, dizia que morava na rua em frente ao píer nove, uma casa repleta de flores na sua varanda, todas plantadas e cuidadas por ele. Sairia a sua procura. Escolheu caminhar pela esquerda, uma rua escura e larga, repleta de galpões, depósitos de contêineres e algumas casas modestas.
Enxergou um totem de madeira onde dizia píer dez. O nove teria que ser o próximo. Continuou andando, arrastando a perna esquerda, caindo em seus joelhos por diversas vezes, mas com sua última gota de energia.
– Pier onze. Que merda.
Deu meia volta e reiniciou uma dolorosa caminhada, trajava apenas sua camisa xadrez e um suéter agora tomado de sangue, o frio era colossal e começava a cobrar seu preço.
Passou novamente pelo píer dez, e meio quilômetro depois avistou a marca do píer nove. Entrou na rua estreita em frente, tremia vertiginosamente, observava casa a casa, em busca de alguma com a frente florida. Logo avistou uma pequena casa azul clara, com floreiras em sua pequena varanda. Subiu alguns degraus que davam na porta da frente, bateu com vigor.
Nada aconteceu. Bateu novamente, esmurrando com desespero a porta, mas ninguém apareceu. Caiu de joelhos, não tinha forças para buscar socorro em algum outro lugar, bateu agora devagar, derradeiras batidas antes do seu corpo perder as forças e cair junto a porta. Tentou erguer-se com os braços, a visão virou uma luz opaca, caiu novamente. Segundos depois parou de tremer, e perdeu a consciência.
Hiraeth: Galês: saudades de casa ou de um lugar onde você não pode retornar, nostalgia e pesar por não poder voltar à lugares do seu passado.