Capítulo 12 – Vicissitude
Sam a fitou confusa, com o cenho franzido.
– Ir para casa? Você já está em casa, amor.
– Estou?
– Sim, você veio ontem de manhã, não se recorda?
Theo balançou a cabeça, sem jeito.
– Acho que lembro. Então estou no meu quarto?
– Não, você está num quarto no andar de baixo.
– Ah. O que é isso? – Theo perguntou, colocando a colher dentro da tigela de frutas e percebendo o conteúdo.
– Salada de frutas, só as que você gosta.
– Eu já posso comer frutas?
– Pode, estas frutas estão liberadas, você vem comendo frutas há alguns dias.
Meg se aproximou, injetando algo em seu acesso intravenoso no braço esquerdo, Theo puxou seu braço.
– Quem é você?
– Meg, a enfermeira.
– Onde está Susie?
– Susie ficou no hospital, Theo. – Sam respondeu. – Susie trabalha lá, não aqui.
– Ok. – Respondeu, e comeu finalmente as frutas à sua frente.
Receberam a visita de Letícia e Daniela à noite, que evitaram maiores conversações com Theo, que parecia ainda confusa. A deixaram com a segunda enfermeira, Molly, e foram para a sala multimídia, assistir algo.
– Eu vou antecipar a consulta com Doutor Franco, tem algo errado. – Sam dizia, de forma apreensiva, estava sentada no tapete no chão, em frente ao sofá, bebendo uma cerveja.
– Na verdade isso é comum nesses casos, ela teve alguns danos sérios. – Letícia respondeu, o casal estava largado no sofá, também com suas cervejas.
– Sim, ela tinha essas confusões de vez em quando, mas agora é mais frequente.
– Pode ser pela mudança, por ter vindo para cá. – Daniela disse.
– Mas é tudo que ela queria, finalmente voltar para casa.
– Isso tem uma carga emocional grande, eu sei que ela queria voltar para casa, mas muita coisa aconteceu desde o dia em que ela saiu daqui para ir para a aula e não voltou mais, ela não é a mesma.
– As coisas tendem a melhorar devagar, tenha paciência, Sam. – Dani disse.
Uma semana passou-se, e Theo oscilava mudanças repentinas de humor e lapsos de memória.
Naquela tarde, Sam havia passado algumas horas na Archer, tentaria retomar sua rotina, já que Theo seguia estável.
– O que faz saindo do quarto de Theo? – Sam interpelou Mike, ao chegar em casa.
– Nada, fui ver se ela precisava de algo, ou se queria conversar.
– Eu disse para não entrar nesse quarto, você é surdo?
– Hey, abaixe as pedras, ok? Estou em paz.
– Quando você vai embora?
– Quando encontrar um lugar decente e me estabilizar no trabalho, não ganho o suficiente para manter uma vida confortável.
– Se o problema for dinheiro, podemos resolver isso rapidamente.
Mike deu um risinho.
– Não é tão simples assim. E você sabe o que acontece se tentar me tirar a força, certo? – Virou as costas e seguiu para seu quarto.
Sam foi até o cômodo onde os seguranças passavam algum tempo, e conversou com o chefe de segurança, o instruindo a ficarem de olho nas visitas de Mike ao quarto de Theo. Assim que deixou a sala dos seguranças, seu comunicador tocou, era seu pai.
– Oi pai, como você está? As dores no quadril foram embora?
– Samantha, que história é essa de expulsar Mike de casa?
Sam suspirou chateada.
– Ele anda fazendo fofocas para você?
– Não é fofoca, é conversa de homem. Ele cuidou de você por anos, depois te ajudou quando você fez o transplante, e agora quer simplesmente mandar embora? Isso não é atitude de gente honrada. – Elliot falava furioso.
– Pai, ele tem feito mal a mim e à Theo, eu não aguento mais esse estorvo aqui, ele só sabe encher meu saco.
– Não fale assim com seu pai! Escute, se você mandar Mike embora, você não precisa mais pisar em Kent, está entendido?
E a ligação finalizou.
– Que droga…
Sam esperou a cabeça esfriar, minutos depois foi finalmente ver Theo.
– Cheguei, meu amor. – Sam disse sorridente, adentrando a UTI domiciliar.
– Foi devorada pelos conselheiros? – Theo perguntou, recebendo um beijo nos lábios.
– Uhum. Me dê mais um. – Sam deu um beijo mais demorado. – Você está bem? Parece abatida.
– Estou bem, só estou cansada da fisioterapia.
– Não faça esforços demais, você pode ser machucar, pegue leve, mocinha.
– Quer ver o que aprendi hoje? – Theo disse animada.
– Quero sim.
– Ok, afaste-se.
Theo deu o comando para que a cama elevasse a cabeceira. Inclinou-se para frente, tirou o cobertor de cima das pernas, trajava um short, e com dificuldade girava para o lado de fora da cama, colocando as pernas para fora.
– Acho que você vai cair. – Sam disse preocupada, se aproximando.
– Não, não me ajude. – Finalmente colocou as pernas balançando para fora, ficando sentada na beira da cama.
– Você está sentada. – Sam abriu um sorriso.
– Já sento sozinha, não é ótimo? Amanhã descerei os degraus aqui embaixo.
– Não tem degraus abaixo de você, só para avisar.
– Não? Então é bom providenciar, quero sair da cama em breve.
– Não tenho a menor dúvida que você vai sair andando dessa cama em breve, mas não tão em breve, ok? Vamos com calma, hoje foi uma grande conquista.
– Eu sei… Ainda não tenho forças nem firmeza nas pernas. Nem no braço esquerdo, e essa mão biônica não me obedece direito. – Suspirou.
– Posso me aproximar agora?
– Venha. – Theo ergueu os braços à frente, a abraçando.
– Hum… É bem melhor abraçar você assim sentadinha. – Sam disse em seu ouvido.
– Tem algo ainda melhor. – Theo desprendeu-se, ergueu a mão em busca do rosto de Sam, até encontrar seu rosto e em seguida seus lábios. Era um código que Sam sabia muito bem o significado.
Foi um beijo que não deixou nada a desejar aos beijos lascivos de outrora, inclusive com a mão de Sam passeando pela nuca de Theo, um código involuntário que Theo também conhecia muito bem.
Ao cessar o beijo, Theo continuou correndo suas mãos pelo corpo de Sam.
– Está frio lá fora? – Theo perguntou, ao perceber que ela usava uma blusa leve de lã, que era verde clara, por cima de uma camiseta de malha, branca.
– Um pouco, já estamos quase em maio.
– Você está menos quente que antes, não é?
– Estou, perdi alguns décimos centígrados, já não sou tão Borg.
Theo colocou ambas as mãos por baixo da roupa de Sam.
– Posso te ver um pouquinho? – Theo pediu, de mansinho.
– Quando você quiser. Quer que eu tire a camisa?
– Meg está por aqui?
– Não, já sinalizei para ela nos deixar, minutos atrás. – Sam riu.
– Então quero.
Sam despiu-se das duas blusas, ficando apenas de sutiã branco, Theo não hesitou, corria delicadamente por cada centímetro nu, com um sorrisinho arteiro. Eram apenas toques despretensiosos, mas eram suficientes para Sam sentir leves estremeceres.
– Você está ainda mais linda do que antes. – Theo confidenciou.
– Não sei, mas saiba que não me importo se você quiser continuar verificando.
Theo sorriu e a beijou, Sam resolveu contra-atacar, e começou a correr suas mãos por baixo da camiseta azul de alguma banda que Theo trajava, mas não por muito tempo.
– Não quer que eu veja você? – Sam perguntou com a voz mansa.
– Não. – Theo respondeu, constrangida, com a cabeça enfiada no colo de Sam.
– Mas você sabe que continua sendo a garota mais bonita que já conheci, não sabe?
Theo não respondeu.
– Amor, algo te incomoda? – Sam perguntou.
– Eu não me sinto à vontade com meu corpo.
Sam ergueu seu rosto, com ambas as mãos, e de forma suave.
– Tudo bem, não precisa ficar assim sem jeito, prometo ajudar você a recuperar sua autoestima, combinado?
***
– Não é apenas um problema de autoestima. – Letícia sentenciou, conversavam num café próximo à Archer, alguns dias depois.
– Do que mais? – Sam indagou.
– Ela tem problemas psicológicos bem mais profundos que isso.
– Eu não sei o que acontece… – Sam parecia desolada. – Ela está se fechando, quando eu a toco ela se retrai, Meg me disse que tem a flagrado chorando, Theo não permite que eu a veja assim, ela parece tão angustiada, acho que essas limitações estão a deixando assim, ela está desmoronando.
– Ela está desmoronando porque agora ela pode desmoronar. Antes ela não podia, ela canalizou todas as forças e pensamentos em te salvar, na sua busca pelo coração, ela não podia fraquejar porque queria que você sobrevivesse. E você sobreviveu, ela se recuperou do tiro, agora está encarando seus próprios monstros.
– Quando você fala em monstros, você está se referindo ao período em que ela passou no Circus?
– Acho que essa é a causa principal, ela tem outras dificuldades também, mas é isso que desencadeia os problemas e neuras.
– Então é por isso que ela está se fechando?
– Posso te perguntar uma coisa?
– Claro.
– Você tem ideia de como é um prostíbulo? Das coisas que acontecem lá dentro?
– Tenho, claro que tenho.
– Você tem ideia das coisas que ela era obrigada a fazer?
– Não gosto de pensar nisso.
– Mas precisa pensar, se você quer ajudá-la a superar isso, você precisa entender o que ela passou.
– Eu tenho uma boa ideia de como as coisas funcionam nesses lugares.
– Tem? Tem mesmo? Você consegue imaginar o que é ser violentada diariamente? Por quase dois anos? Theo esteve perto da morte várias vezes, ela viu a morte na sua frente em várias ocasiões, ela presenciou suicídios e overdoses. Arrancaram toda a dignidade dela, programa após programa, a transformaram num pedaço de carne para fins sexuais.
Sam parecia incomodada, enjoada.
– Eu sei, eu imagino o inferno por qual ela passou.
– Ela foi espancada mais de cinquenta vezes, por seguranças ou por clientes, e não me refiro a situações simplesmente violentas, ela levou mais de cinquenta surras. Sabe quantas marcas de fraturas e fissuras ela tem nas costelas? Dezenove. Sabe porque ela tem problema respiratório agora?
– Ela tem uma falha no pulmão, algo assim.
– Não, ela tem uma cicatriz, de uma perfuração que sofreu numa das surras, após uma tentativa de fuga.
– Como você sabe dessas coisas? – Sam a olhava perplexa.
– Ela me contou.
– Ela não me conta nada, Lê.
– Isso não é desculpa, pegue a porcaria do seu comunicador e leia relatos de mulheres que foram vítimas de tráfico sexual.
Sam parecia envergonhada, movendo a cabeça de forma cabisbaixa e incomodada.
– A culpa é minha, dela não me contar essas coisas. – Sam admitiu.
– O que você fez?
– No início eu não acreditava nela, fazia pouco caso quando ela tocava nesse assunto, eu a afrontei.
– Você fez isso? – Letícia largou a xícara na mesa.
– Fiz, eu fui insensível, eu dizia que era vitimismo dela.
Letícia olhou atônita para Sam, e levantou-se.
– Eu preciso sair.
– Por que?
– Porque estou com vontade de bater em você.
– Não vá, pode me bater se quiser.
– É claro que não vou bater em você, mas estou muito, muito possessa. – Letícia voltou a sentar.
– Eu não fazia ideia, eu estava desesperada com meu maldito prazo de vida que se esgotava, não tive sensibilidade suficiente para lidar com isso. Mas as coisas mudaram, pelo amor de Deus, Lê! Você bem sabe o quanto tenho me dedicado a ela, você acha que ainda sou insensível assim? Ela é a minha vida agora!
– Ok, ok. Não quis te acusar de nada, mas sim, eu ainda estou brava por você ter sido uma idiota com ela. Mas vamos achar formas de resolver isso, ok?
– Como o que? – Sam perguntou.
– Ela precisa de uma boa terapia, em primeiro lugar.
– Certo, providenciarei, o que mais?
– Converse com ela, eu sei que você vai me dizer que ela está fechada e bla bla bla, mas encontre formas de desarmá-la, de deixá-la à vontade.
Sam entrelaçou as mãos em sua nuca, suspirando longamente de olhos fechados.
– Ela também está decepcionada por não conseguir ficar de pé, me disse que quer parar com a fisioterapia porque não serve para nada. – Sam comentou.
– Ela está negativa, mas tem mais coisas aí.
– Eu queria saber o que é.
***
Enquanto Sam e Letícia tomavam seus cafés amargos, Theo recebeu a visita de Mike, assim que a terceira enfermeira, Magda, saiu do quarto.
– Impressão minha ou você mandou o fisioterapeuta embora mais cedo hoje? – Mike perguntou, caminhando na direção da cama.
– Eu estava cansada. – Theo respondeu rispidamente.
Mike sentou-se na beirada da cama, de frente para Theo.
– Nossas conversas não estão servindo para nada? Sam ainda não me procurou, sequer está mais amigável comigo. Acho que você não tem cumprido sua parte no acordo.
– Eu não fiz acordo algum com você.
– Ok Theodora, me diga, do fundo do seu coração, você acha que Sam vai te aguentar por quanto tempo? Um mês? Seis meses? Acho que não tanto. Todo mundo tem um limite, eu percebo que o limite dela está chegando ao fim, ela confidenciou para Marcy que tem se sentido sozinha, que você não tem sido uma boa companhia.
Theo ouvia tudo, atentamente.
– Eu ia dizer para você se olhar no espelho, mas às vezes esqueço que você não enxerga. Não enxerga, não anda, não faz sexo. O que você faz? Toma vinte remédios, dorme o tempo todo, defeca e urina em saquinhos presos a você. Esquece de tudo no meio da conversa, esquece onde está, o que estava falando. Você se tornou um grande fardo, não percebe?
– Por que não me deixa em paz? – Theo pedia de forma angustiada, tentando não chorar.
– Você definhou, você não é mais aquela garotinha bonita de algum tempo atrás, é só uma ex-prostituta aleijada que não serve para nada, nem para dar ou comer, um ser de dar pena. Sam vai desistir logo, ela não encontra mais o que procurava em você.
– Afinal, o que você quer?
– Que desista de Sam, só isso. Aos poucos eu a reconquistarei, mas preciso que você saia do caminho.
– Se eu desistir de Sam, e a fizer desistir de mim, eu quero que ela encontre uma pessoa que a trate bem, eu não quero que ela fique com você, ela merece alguém melhor do que eu ou você. – Theo tremia o queixo. – Merece mais do que posso oferecer, eu sei, mas você… Você não…
– Viu? Nem consegue finalizar uma frase. – Mike sorriu. – Eu sou o que ela precisa, e ponto final. Sou homem, e sou um homem honrado e cristão, sou saudável e não me deitei com mil pessoas, como você. Theo, convenhamos, você não tem a menor chance, você acha que quando Sam toca em você, ela não pensa em todos os milhares de homens que já te comeram? No seu lugar, eu teria nojo de tudo que já fez, e desse corpo sujo e inútil.
– Por favor… Não quero… Me deixe aqui. – Theo estava agitada, com a fala confusa.
– Você sabe que voltarei, e em alguma visita talvez eu adiante o processo de desapego, injetando algum medicamento por engano em você, em uma dose fatal.
Mike saiu, deixando uma Theo nervosa e devastada para trás.
A noitinha, quando Sam chegou, Theo sequer virou-se na cama quando ela entrou no quarto. Continuou encolhida virada para o outro lado, com o quarto numa penumbra.
– Desculpe a demora, eu estava tomando um café com Letícia, conversando um pouco. – Sam aproximou-se, pousando a mão em seu ombro.
– Tudo bem. – Theo respondeu com a voz fraca.
– Já jantou?
– Já.
– Por que eu não ganho mais meu beijo de boas-vindas?
– Eu estou com sono, pode me deixar dormir?
– Claro. – Sam saiu cabisbaixa, subindo para seu quarto.
No dia seguinte, o clima era o mesmo, Sam passou a manhã no sofá ao lado da cama, tentando puxar conversas leves, mas Theo estava monossilábica.
– Meg me disse que você demitiu Eron, é verdade isso?
– Não. Só dei alguns dias de folga para ele.
– Como vai fazer as sessões de fisioterapia agora?
– Eu não preciso.
– Você sabe que vai piorar, parando com a fisio, né? Você não vai voltar a andar se continuar com esse pensamento.
– Eu não preciso andar.
– Ainda bem que amanhã você começa as sessões com o psiquiatra, você está ficando cada vez pior, espero que com ele você converse.
– Eu não vou.
– Vai sim.
– Não vou, e me deixe em paz.
– Quer que eu saia?
– Não precisa ficar aqui, já tenho enfermeira.
– Ok, acho que minha companhia não é bem-vinda, vou almoçar na rua, depois vou para a Archer.
Dois dias depois, Magda teve uma emergência e precisou sair por algumas horas, Mike estava em casa, de folga no trabalho, e ouviu a conversa entre Magda e Marcy, onde ela pedia que Marcy desse uma olhada em Theo mais tarde.
– Relaxa, só vim cuidar de você, Magda precisou sair, parece que o filho caiu de algum brinquedo. – Mike disse, ao lado da cama de Theo.
– Prefiro ficar sozinha.
– Não é prudente, quem vai administrar seus medicamentos? – Mike sorriu com ironia.
– Eu não vou tomar nada nas próximas horas.
– Hum, acho que vai sim. Deixa eu ver o nome disso… Tramal. Qual sua dose? Na dúvida melhor encher a seringa, não é?
– Eu não posso tomar mais do que 10ml disso. – Theo estava em pânico, apertou o botão de emergência, mas Magda já havia saído há um bom tempo.
– Que tal 50ml? – Deu dois petelecos na seringa cheia.
– Ok, vamos conversar. Você quer que eu termine com a Sam? Eu termino, assim que ela chegar eu termino tudo, eu juro.
– Do que adiantaria? Ela continuaria gostando de você. Preciso de algo mais radical. É por esse acesso que você toma as injeções? – Mike segurou seu braço direito.
– Mike, você vai me matar se aplicar isso! Não injete!
– Se isso derreter seu cérebro já estará de bom tamanho.
– Você é um militar condecorado, quer colocar uma morte dessas em suas costas? Preserve o nome que você construiu, não faça uma besteira que pode arruinar o resto da sua vida.
– Ninguém vai saber, eu não tão bobo assim, já planejei tudo. Ok, não mexa o braço, vai ser rápido, você não sentirá dor, irá apagar logo.
– Não, por favor, não, não, não…
Mike injetou todo o líquido no acesso intravenoso de Theo, ela o sentiu frio percorrendo suas veias, a deixando atônita.
– Sam deve chegar dentro de uma hora, infelizmente encontrará um corpo sem vida em cima dessa cama, enquanto isso eu estarei com um álibi fazendo hora para voltar para casa.
– Mike, me ajude, peça ajuda a alguém, não me deixe morrer aqui!
– Tenha uma boa passagem.
Ele saiu do quarto, mas ficou de olho na porta, a espreita do canto da sala.
Theo apertou o botão de emergência mais algumas vezes, tateou ao redor procurando algum comunicador por perto, mas só conseguiu derrubar coisas. Tentou sair da cama, mas acabou desabando no chão. Tentou se erguer, mas as pernas a traíram, ficou sentada no piso, chorando em pânico, esperando pelo pior.
– Hey! Alguém me ajude! – Gritava sem muita força, mas o quarto estava fechado.
Depois de quinze minutos, Mike retornou ao quarto, a tomou nos braços e recolocou no leito, a cobrindo com o cobertor.
– Eu injetei 10ml de soro em você, já pode parar de chorar. – Mike disse.
– Seu desgraçado… Seu… Seu…
– Isso foi um aviso, mas se você não terminar com Sam hoje, eu termino o que comecei. E se você contar algo para ela, saiba que eu não teria nenhuma dificuldade em levá-la para a Inglaterra, mesmo que contra a vontade, eu tenho meus meios para isso, ela sumiria para sempre da sua vida.
Theo não respondeu nada, ainda estava transtornada.
– Eu volto amanhã. – Mike disse, apagou a luz, e saiu.
Vinte minutos depois, Sam entrou no quarto, que estava na penumbra.
– Sam? – Theo virou-se na cama, na direção de Sam.
– Sim, só vim ver como você está, já vou te deixar quietinha.
– Fica aqui, por favor.
Sam se aproximou da cama, a olhando atentamente.
– Você está chorando? Onde está Magda?
– Deita comigo?
Sam não respondeu, foi logo tirando os sapatos e ajeitando os tubos e sondas, cuidadosamente, por fim deitando ao lado de Theo.
– Aconteceu alguma coisa? – Sam a trouxe para junto do seu corpo, Theo prontamente aninhou-se nela.
– Não. – Theo chorava baixinho.
– Converse comigo, eu prometo que vou te entender.
– Só fique aqui comigo.
– Tudo bem. – Sam afagava seus cabelos, com carinho. – Só saio daqui quando você me expulsar.
Não disseram nada por um bom tempo, Theo seguia nos braços de Sam, pensativa, acalmando-se.
– Se eu tivesse morrido com o tiro, você teria voltado para Kent? – Theo perguntou, já mais tranquila.
– Acho que não.
– Ficaria morando em San Paolo?
– Provavelmente sim. Ou na Baia. Mas acho que ficaria por aqui, trabalhando na Archer, tentando reconstruir minha vida, quem sabe casar.
– Com Mike?
– Mike é o último homem da face da terra com quem eu casaria.
– Não sente mais nada por ele?
– Hoje em dia mal posso olhar para ele.
– Por que ele continua morando aqui?
– Eu já o mandei embora várias vezes, ele diz que irá, mas precisa se estabilizar primeiro.
– Hum.
– Sente-se melhor? – Sam a deitou, e ficou por cima dela, a fitando.
– Não sei.
– Você está com uma carinha péssima.
– Estou repensando algumas coisas.
– Espero que esteja repensando a fisioterapia e o psiquiatra também.
– Não quero conversar sobre isso.
– Tudo bem. – Sam deitou-se ao seu lado. – Não fui para a Archer hoje.
– Onde você foi?
– Estou preparando algo para você.
– O que?
– É surpresa.
– O que é?
– Algo que talvez te motive.
– Hum.
– Hum hum para você.
Magda voltou ao quarto, e foi logo preparando seus medicamentos.
– Está melhor, amor? Permite que eu vá tomar um banho e comer algo? – Sam pediu.
– Sim, pode ir, estou melhor.
***
Uma hora depois, Meg assumiu o turno.
– O que faz sentada aí no escuro? – Meg perguntou, acendendo a luz da UTI, Theo estava sentada com as pernas para fora.
– Pensando na vida.
– Está pensando em dar uma voltinha?
– Na verdade, sim. Mas não hoje. – Theo estava com um semblante duro, quase enraivecido.
– Me avise com antecedência, para poder correr atrás de você.
– Trouxe sua janta. – Sam disse, entrando no quarto com uma bandeja. – Vai sair andando?
– Meg já fez essa piadinha, você chegou atrasada.
– Ok, aproveitando que seu humor ácido voltou, o que significa uma melhora no seu estado, não te darei comida na cama.
– Terei que ir buscar? Não deixe muito longe, minhas pernas são umas imprestáveis traiçoeiras.
– Venha cá. Meg, me ajude.
As duas tiraram Theo da cama, a sentando numa confortável poltrona ao lado do leito.
– Agora sim, vai jantar sentada. – Sam disse, colocando a bandeja em seu colo.
– Confesso que foi uma brilhante ideia, oficial.
Sam sorria abertamente à sua frente, Theo realmente parecia bem melhor.
Por volta da meia-noite, Meg aplicava alguns remédios em Theo, que dormia, Sam acordou no sofá, sentou-se, e alongava-se com semblante dolorido.
– Vá dormir na sua cama. – Meg se aproximou e sussurrou.
– Acho que vou, minhas costas estão me matando. Cuida direitinho dela.
Sam saiu andando devagar, com a mão nas costas.
– Meg? – Theo a chamou, minutos depois.
– Estou aqui, pequeno pássaro da asa quebrada.
– Por que pássaro da asa quebrada? – Theo se ajeitava na cama.
– Porque percebo que você está louca para voltar a voar, mas ainda não consegue.
– Eu quero voar.
– Essa é a parte mais importante do processo. Esse remédio é o que arde, não é? Desculpe ter te acordado. – Meg esfregava seus dedos pelo braço de Theo, onde havia injetado o medicamento.
– É, esse é o que dói, odeio esse.
– Culpa dessas suas pneumonias sorrateiras. – Meg sentou ao seu lado.
– Meg, eu quero andar.
– Se você continuar demitindo os fisioterapeutas, vai demorar para voltar a andar.
– Eu preciso andar, tenho coisas a resolver.
– Como o que? Cortar a grama?
– Não seja engraçadinha, eu estou falando sério, e quero completar meu raciocínio antes que meu cérebro tenha um lapso ou desligue.
– Ok, prossiga.
– As coisas irão mudar, não quero continuar assim.
– Essa é a atitude que eu estava esperando de você, porque sei que você é muito mais forte que essa criancinha chorona que derruba copos de propósito.
– Eu sou sim, acho que me deixei levar porque minha cabeça tem me pregado peças, eu estava insegura, mas chega, acabou. Eu já superei coisas bem maiores que essas, não faz sentido eu sentir medo, eu quero atacar a raiz do meu medo.
– E você sabe que tem aliados nessa luta, certo? Eu, Sam, Letícia, Daniela, Claire, somos todas suas soldados.
– Eu sei, e vou precisar de sua ajuda sim. Me traga uma tela, preciso pesquisar algumas coisas, eu quero enfrentar meus problemas de pé.
Vicissitude: s.f.: mudança das situações durante uma ação, mudança, mutabilidade, sequência de alterações, alternativas.